A Unasul diante da emboscada neoliberal
No começo deste Século 21, a região latino-americana e caribenha viveu a emergência de processos de reconfiguração que a levaram a uma nova etapa, com o lançamento de iniciativas integracionistas que tiveram como protagonistas os Estados Nação latino-americanos e seus governos. A União das Nações Sul-americanas (Unasul) foi um produto dessa época de mudanças marcada pela retomada de um espírito de unidade, promovido pelos interesses brasileiros.
Por Nastasia Barceló e Amanda Barrenengoa*
Publicado 25/10/2017 16:46
Apesar do rechaço à Alca (na Cúpula das Américas de 2005, em Mar del Plata) ser um dos seus eventos fundacionais, a verdade é que desde o ano 2000 foram realizadas diversas reuniões, eventos multilaterais e outras instâncias de reflexão e debate sobre as agendas e desafios para construir uma unidade sul-americana, as quais confluíram na Declaração de Cuzco (2004), na de Brasília (2005) e na de Cochabamba (2006). Como resultado destas cúpulas, Se decide criar um espaço comum sul-americano amplo intergovernamental, inspirado numa “história compartilhada e solidária das nossas nações, multiétnicas e multiculturais, que lutaram pela emancipação e pela unidade honrando o pensamento daqueles que forjaram nossa independência e liberdade a favor dessa união e da construção de um futuro comum” — como diz o próprio tratado constitutivo da entidade.
Herdeira da Comunidade Sul-americana de Nações (a CASA, embrião surgido em 2004), a Unasul foi concebida finalmente no abril de 2008, aglutinando um complexo e heterogêneo grupo de doze países. Os Estados-membro e suas figuras presidenciais deram à entidade uma relevância especial, elaborando agendas de integração política, econômica, social, cultural e energética, entre outros importantes temas voltados ao bem-estar dos povos e a solução dos problemas estruturais, como a pobreza, a desigualdade e a exclusão, tudo isso em meio a um cenário internacional de crise financeira. Assim, com um claro impulso brasileiro, foi possível configurar um bloco sul-americano com traços específicos.
A história recente dos países latino-americanos, marcada por golpes de Estado e constantes ameaças desestabilizadoras a governos democráticos, provocaram a necessidade de aprofundar os esforços e compromissos para que a integração seja construída, sobre os valores da democracia. No entanto, desde a criação da Unasul se produziram momentos críticos para a institucionalidade democrática na região, nos quais o bloco participou na qualidade de mediador.
Alguns exemplos são as reiteradas crises políticas na Bolívia, quando a Unasul foi essencial para frear as manobras de alguns setores da chamada Meia Lua (os departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni, Pando e Chuquisaca), que pretendiam dar um golpe de Estado contra o presidente Evo Morales, apoiados pela embaixada dos Estados Unidos. A Unasul se posicionou do lado da democracia e do Estado de direito também em Honduras, após o golpe de Estado sofrido pelo presidente Manuel Zelaya, em junho de 2009, assim como no caso do Equador em 2010, em ataque contra o presidente Rafael Correa. No mesmo ano de 2009, quando o então presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, anunciou a intenção de assinar um Acordo de Cooperação Técnica com os Estados Unidos — o que permitiria o uso de sete bases militares em território colombiano, com a possibilidade de acesso a outras instalações sob seu controle absoluto –, a Unasul se reuniu em Bariloche e concordou em declarar a América do Sul como uma “Zona de Paz” d reafirmou o princípio da solução pacífica dos conflitos sem a intervenção de potências estrangeiras que pudessem ameaçar a estabilidade da região.
Em todos estes casos, a Unasul mostrou a capacidade que os países sul-americanos têm de resolver os conflitos e as crises de forma autônoma, sem a intervenção de organismos e países extra regionais. Portanto, uma das conquistas foi o estabelecimento do diálogo como via de solução dos problemas, a narrativa da cooperação e do conhecimento entre os Estados. Ademais, isto se deu num momento de reestruturação do poder estatal, para o qual a Unasul foi uma mediação que serviu à recomposição do rol político estratégico dos projetos emancipatórios, numa luta constante contra o neoliberalismo, e num contexto favorável devido à crise financeira global.
Entretanto, no último triênio, a correlação de forças nos países de maior peso político mudou, e isso se viu refletido na agenda de cooperação regional. O triunfo da coalizão neoliberal encabeçada por Maurício Macri na Argentina, o golpe de Estado no Brasil travestido de juízo político contra a presidenta Dilma Rouseff e a situação política na Venezuela após a morte de Hugo Chávez foram as mudanças que reorientaram a política exterior desses países.
As consequências não tardaram: por um lado observamos o renascimento da OEA (Organização dos Estados Americanos) como espaço diplomático predileto dos novos governos para tratar as crises regionais. Um exemplo disto foram os reiterados pronunciamentos do Secretário Geral da entidade, o uruguaio Luis Almagro, sobre a situação da Venezuela. Em segundo lugar, a passividade que a Unasul manteve diante de situações como a perseguição contra líderes políticos e sociais — como a detenção da líder comunitária Milagro Sala na Argentina –, assim como outros eventos onde se observa a violação dos direitos civis e sociais, e contra as quais o bloco decidiu não atuar.
Por que a Unasul vem se mostrando incapaz de dar respostas concretas às sucessivas crises que seus diferentes países-membros atravessam nos últimos anos? Podemos apontar vários fatores que contribuíram para a desarticulação deste bloco, que outrora soube encontrar as reações adequadas e eficazes para enfrentar profundas crises e tentativas de desestabilização.
Já se passaram quase três anos desde o último encontro do Conselho de Chefes e Chefas de Estado — em dezembro de 2014, em Guayaquil. Neste 2017 foram realizados somente dois dos doze conselhos ministeriais. Ainda não existe consenso em torno a quem será o próximo secretário geral, situação que deixa o bloco à deriva, uma paralisia institucional que já dura seis meses. Todos estes aspectos são um reflexo da inexistente vontade política de dar continuidade a um processo de integração que tentou fortalecer a autonomia, a soberania e a democracia dos nossos povos. Desta maneira, as agendas foram ampliadas e com elas aumentou também a burocracia, sem que isso signifique uma maior concertação e diálogo político entre seus membros. Pelo contrário, a Unasul se mostra hoje uma instância intergovernamental fragilizada.
A Unasul conta com as ferramentas mas não pode usá-las. Em 2014, os Estados-membros e signatários legitimaram potencialmente a supervisão dos seus processos políticos, com a previsão de instrumentos como o Protocolo de Georgetown, para atuar contra “determinadas situações que ponham em risco o legítimo exercício da democracia”. No entanto, novamente a falta de diálogo e de estratégias comuns impossibilitaram sua aplicação. Outro elemento que influiu na desarticulação da Unasul e o impacto da crise financeira global nas economias dos países-membros, fazendo visíveis certas contradições e limitações nos processos de desenvolvimento e industrialização com redistribuição de renda impulsados na década passada. Por sua vez, as divergências nas agendas de integração são eclipsadas pelos caminhos que oscilam entre o Atlântico e o Pacífico. Exemplo disso é o fato de que Colômbia, Peru e Chile pertencem à Aliança do Pacífico, a qual atrai novos governos que buscam novos investimentos e alianças com outros blocos e atores internacionais.
A Unasul é um organismo que se consolidou a partir das lideranças fortes do continente na década passada. As mortes de Néstor Kirchner e Hugo Chávez tiveram um forte impacto, na medida em que se voltou a adotar na região as medidas econômicas neoliberais. Isto, junto com uma certa dificuldade das coalizões de governo para sustentar uma dinâmica regional imediata, em tempos nos quais as contradições nas políticas nacionais eram um alerta sobre a continuidade dos projetos populares, gerou uma clara reviravolta nos governos, que voltaram suas atenções aos problemas internos. O estratégico projeto do Banco do Sul, impulsado por Brasil, Argentina, Equador, Venezuela, Uruguai, Paraguai e Bolívia, aprovado pelas câmaras legislativas de quase todos estes países — exceto Brasil e Paraguai — se mantém congelado há mais de três anos.
Desta forma, a fortaleza institucional, o peso das lideranças presidenciais e dos consensos como método para a tomada de decisões, se transformam hoje em aspectos de fragilidade extrema quando se tenta insistir numa agenda que consiga retomar minimamente as rotas e estratégias comuns à integração. A Unasul é um organismo intergovernamental, e como tal depende das variantes trazidas pelo presidencialismo predominante em cada país da região, as constantes mudanças na correlação de forças interna dos mesmos. Logo a sustentação dos processos de integração e cooperação regional são o reflexo de uma dinâmica muito frágil em termos institucionais. Entretanto, se analisamos o contexto internacional no qual nos encontramos, podemos afirmar que nossa região vive uma situação diferente da que estava nos anos prévios ao surgimento da Unasul, devido ao impulso de novas ferramentas integracionistas, de clara hegemonia neoliberal. Neste sentido, se adotamos uma visão mais complexa sobre os limites político-institucionais, podemos afirmar que ainda existe uma pugna constante entre distintos projetos estratégicos no âmbito internacional, num mundo em crise e com novas zonas emergentes disputando com os Estados Unidos e a Europa, como são a China e a Rússia (que contam ademais com mecanismos como os BRICS). Isto implica na permanência da disputa entre as forças sociais e políticas na América Latina, impedindo a sustentação de projetos emancipatórios na direção de uma independência definitiva, enquanto persistam esses conflitos.
Anos de pensamento latino-americano, anos de lutas independentistas, e a acumulação de experiências populares, apesar das suas contradições e limitações, continuam inclinando a balança para o lado de considerar que uma América Latina unida é possível.