O cenário cultural brasileiro perde Francis Vale

O cinema brasileiro perdeu nesta sexta-feira (08) um de seus grandes nomes. Morreu o cineasta cearense Francis Vale, aos 72 anos, vítima de um câncer contra o qual lutara com todas as forças nos últimos anos, sem jamais perder o otimismo. Convicção que ele manteve por toda a vida, marcada pela crença na arte como elemento essencial à transformação da sociedade e à melhoria da vida do povo.

Francis Vale

Cineasta, produtor cultural, escritor e compositor, Francis Gomes Vale seguia cheio de planos e de vontade de viver, já cuidando de preparativos para a edição 2018 do Festival de Jericoacoara Cinema Digital, que mantinha desde 2010 e que neste ano chegara à sua sexta edição.

Também seguia trabalhando na divulgação de seu mais recente filme, o documentário “Trem da Alegria – Arte, Futebol e Ofício”, rodado em sua maior parte no Rio de Janeiro, com depoimentos de ex-jogadores de futebol profissionais, como Afonsinho, e de muitos músicos que integraram o time conhecido por promover o encontro entre esporte, cultura e resistência política. O filme foi lançado neste ano, com a presença de Francis, em espaços referenciais da cena cultural cearense, como o Cineteatro São Luiz e o Centro Cultural Banco do Nordeste.

A resistência à ditadura civil-militar instalada no Brasil desde 1964 foi uma das marcas da trajetória de Francis Vale, que militou no movimento estudantil e integrou a geração de artistas que se tornaria conhecida em todo o País, na primeira metade dos anos 70, por levar sua música às grandes gravadoras nacionais. Entre nomes como Fagner, Belchior e Ednardo, sempre foi bastante próximo ao cantor e compositor Rodger Rogério e à cantora Teti, entre vários outros nomes do chamado “Pessoal do Ceará”.

No cinema ajudou a criar a mostra que daria origem ao Cine Ceará, hoje um dos maiores festivais do setor em toda a América Latina. Dirigiu filmes como “Dom Fragoso”, um documentário sobre o religioso que se tornaria conhecido por lutar contra a ditadura, a partir do pequeno município de Crateús, no extremo oeste do Ceará.

Francis também lançou o disco “Liberado”, no final dos anos 80, em parceria com o compositor e poeta Alano Freitas. O título é mais uma referência à resistência contra a ditadura, com sua censura e sua “liberação” ou não de canções. O disco contou com participações de grandes nomes da música do Ceará e do Brasil, como Kátia Freitas, Chico Pio e Manassés.

Comenda Bergson Gurjão

O cineasta e agitador cultural foi homenageado na abertura da 23ª Conferência Estadual do PCdoB-CE, realizada em outubro deste ano. Acompanhado de amigos e familiares, Francis Vale foi agraciado com a Comenda Bergson Gurjão, honraria conferida a “pessoas ou instituições que se empenharam em prol da dignidade humana, do bem estar do povo, da democracia, da liberdade e de um Brasil justo”.

Em apresentação, Benedito Bizerril, vice-presidente do PCdoB-CE, enalteceu a trajetória política e cultural do colega com quem, em meados da década de 1960, reorganizou o Partido no Ceará. Emocionado, Francis Vale agradeceu a homenagem. Em suas palavras, relembrou quando, durante férias em Crateús, conheceu o jovem Bergson, que dá nome à comenda. “Um primo meu era amigo dele e lá nos conhecemos. Tempos depois já estávamos unidos na luta no movimento estudantil”.

Vale filiou-se ao PCdoB em 1965 e, apesar de ter-se afastado da organização partidária em 1971, sempre manteve ideias e ideais próximos aos pensamentos do PCdoB, fato que ele fez questão de ratificar: “O meu sentimento é de que o que é do país pertence ao povo. Nossas riquezas devem ser sim distribuídas e isso só é possível através do socialismo”.

Depoimentos

“Estive na casa dele há poucos dias e ele seguia do mesmo modo como sempre foi: animado, empolgado, com um sorriso no rosto, fazendo planos e projetos”, conta Rodger Rogério, abalado pela notícia na manhã desta sexta-feira. “Ele estava bem melhor, após várias fases de tratamento. Estava muito bem. Estive lá com a Teti e o Vavá (irmão da cantora) e foi uma ótima conversa. Nosso amigo querido”.

“Francis Vale, cineasta, escritor, produtor e militante da cultura brasileira, defensor combativo da democracia e das causas coletivas, faleceu durante essa madrugada. Perde a cultura brasileira, em especial a cearense, e todos aqueles que acreditam na justiça social e na democracia”, destacou o cineasta Duarte Dias, curador de cinema do Cineteatro São Luiz, de Fortaleza.

"Recebi com imensa tristeza a notícia da partida de um grande amigo do peito e companheiro de luta. Francis teve uma vida dedicada à militância de esquerda, com a participação ativa na luta contra a ditadura. Ao lado de Oseas Duarte, Gilberto Fernandes e Pedro Albuquerque, foi um dos reorganizadores do PCdoB no Ceará, participava diretamente da organização da base do Partido na UFC, lutou bravamente durante o regime militar passando inclusive período em rigorosa clandestinidade. Recentemente participou, com Benedito Bizerril, da organização da Fundação Maurício Grabois no Ceará. Seu caráter, sua lucidez política e sua trajetória de luta ficarão como exemplo para as atuais gerações que enfrentam um golpe de novo tipo, dando início a um período tenebroso no Brasil, de ataques à soberania nacional, aos direitos sociais já conquistados pelo nosso povo, de avanço célere a um estado de exceção. Amigo Francis, foi uma grande honra e de muito aprendizado ter lutado ao seu lado", ressaltou Carlos Augusto Diogenes, o Patinhas, amigo e dirigente do PCdoB.

“A morte significa uma perda enorme para nosso Estado, para a cultura e para todos os que se preocupam com o Brasil, que defendem uma sociedade mais justa. Francis foi um grande batalhador: um dos construtores do PCdoB ainda nos anos 1960; membro do jornal Mutirão, instrumento da resistência democrática; teve destacada atuação nas áreas artística e cultural, contribuindo com grandes trabalhos. Seu legado de pessoa comprometida com o Brasil permanecerá em todos nós”, enalteceu o advogado e amigo Benedito Bizerril.

“Francis Vale é um guerreiro, sempre foi. Partiu como sempre viveu: lutando. Ele merece todos os aplausos, todas as homenagens. Porque sempre levantou sua voz em defesa do povo, dos mais necessitados, sempre acreditou na arte como um caminho importantíssimo pra mudar a sociedade. Foi um valoroso companheiro em defesa do povo, e assim também agora mais recentemente, na resistência a todos os ataques e desmandos do governo Temer. Saudade enorme de meu querido amigo. O Ceará e o Brasil perdem um grande artista e um grande lutador”, destaca o deputado federal Chico Lopes.

Velório

O corpo de Francis Vale será velado das 14h às 18h desta sexta-feira, no Centro Cultural Belchior, na Praia de Iracema, em Fortaleza. Bem diante do mar e da juventude, esta que agora recebe a tarefa à qual Francis tanto se dedicou, de seguir lutando por uma sociedade mais justa, um mundo menos desigual, uma vida plena e verdadeiramente livre.