Operações em universidades aumentam temor de cruzada contra ensino

 Desde final de 2016, PF realizou ao menos sete operações para apurar supostos desvios. Conduções coercitivas e prisões temporárias de reitores e professores geram indignação.

Por Felipe Betim*

UFMG - FOCA LISBOA UFMG

Universidades públicas brasileiras entraram na mira da Polícia Federal (PF), que desde dezembro de 2016 realizou ao menos sete operações para apurar supostos desvios administrativos. A última delas ocorreu na última quarta-feira, dia 6 de dezembro, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Batizada de Operação Esperança Equilibrista, a corporação investiga um suposto desvio de recursos na construção do Memorial da Anistia Política na instituição. E, para isso, levou de forma coercitiva o reitor Jaime Arturo Ramirez e outros professores para depor, além de ter cumprido mandados de busca e apreensão.

A ação gerou protestos da comunidade acadêmica, que viu uma série de abusos na operação e uma afronta à autonomia universitária. Também existe o temor de que operações como esta sejam parte de um ataque mais amplo para enfraquecer o ensino superior público. Mas além de professores e instituições de ensino — a última a se a manifestar, nesta terça-feira, foi a USP — , entidades como a OAB de Minas e personalidades como os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Dilma Rousseff (PT) também repudiaram a última ação policial. Em geral, os questionamentos se centram — como ocorreu em ocasiões durante a Operação Lava Jato — no suposto uso abusivo do instrumento da condução coercitiva, que segundo a lei deveria ser realizada quando uma pessoa intimada a depor se nega a comparecer.

Não foi o que aconteceu neste caso, como em vários outros relacionados a Lava Jato. Mas em sua decisão, a juíza federal Raquel Vasconcelos Alves de Lima explicou que a medida era “indispensável à investigação, de modo a possibilitar que sejam ouvidos concomitantemente todos os investigados, para impedir a articulação de artifícios e a subtração das provas quanto à materialidade e autoria das pretensas infrações”. Justificativas como a da magistrada foram usadas durante as várias fases da Lava Jato que também lançaram mão de conduções coercitivas. “A determinação judicial, ainda que pareça um pouco mais dura, é para garantir que as provas sejam preservadas. Porque hoje é muito fácil destruir uma prova, basta dar um enter. Tudo vai depender das circunstâncias que a polícia e o MP levarem para o juiz do caso”, explica a desembargadora Ivana David.

Thiago Bottino, professor de Direito da FGV Rio, discorda e argumenta que um mandado de busca e apreensão pode ter o mesmo efeito surpresa e evitar a destruição de provas. Para ele, existem duas motivações, “que andam juntas”, por trás da condução coercitiva. “A primeira é que você quer usar a surpresa para dificultar o exercício do direito de defesa e ao silêncio. Quando policiais armados chegam às 8h na casa de uma pessoa e a levam para um local, isso cria um ambiente de intimidação que dificulta o contato com advogados, com a família… Muitas vezes a pessoa nem sequer sabe os motivos pelos quais está sendo investigada. Ela fica numa situação de muita insegurança”, explica ele. O segundo motivo, afirma, é a vontade da força tarefa de criar um espetáculo midiático em torno da operação e de “mostrar serviço” para a população. “A ideia é fazer uma grande operação que saia nos jornais e que passe a impressão de que um grande crime foi descoberto”.

Em entrevista ao EL PAÍS, a advogada criminalista Marina Coelho Araújo explicou que "este fator simbólico pode acabar saindo pela culatra, porque lá na frente pode haver alguma nulidade ou algo diferente do que foi publicado no jornal, o que pode fazer com que as pessoas não achem que a polícia errou, mas sim que há impunidade". Ela também taxou de "absurdo" o uso frequente da condução coercitiva e explicou ainda que os casos envolvendo universidades se encaixa na "onda geral de que temos que combater a corrupção a qualquer custo, mesmo que procedimentos legais sejam deixados de lado".

Em nota, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal — que não respaldou a condução coercitiva na UFMG — pediu "uma reflexão sobre o eventual uso exagerado de medidas coercitivas, especialmente no ambiente da academia, a qual goza de autonomia constitucional". Disse ainda que "qualquer iniciativa de investigação de desvios de recursos na implementação do Memorial não pode ser usada para depreciar a importância jurídica e histórica da preservação da memória sobre o legado de violações aos direitos humanos no regime militar autoritário". Assim, disse considerar "infeliz a denominação dada à operação policial, a qual se apropria de passagem de música [O Bêbado e o Equilibrista] de Aldir Blanc e João Bosco, imortalizada na voz de Elis Regina, e que se tornou hino da luta por liberdades e direitos no País, especialmente daqueles que foram mortos, torturados ou desapareceram por força da repressão política durante a ditadura militar".

Outro instrumento questionado é o da prisão preventiva ou temporária, esta última utilizada em setembro na Operação Ouvida Moucos, que investiga irregularidades na concessão de bolsas para ensino a distância na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Segundo as investigações, os desvios totalizam 80 milhões de reais e envolvem docentes, empresários e funcionários de entidades parceiras que teriam atuado através da concessão de benefícios a pessoas sem qualquer vínculo com a instituição. Acusado de atrapalhar as investigações, o reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo acabou preso. Solto no dia seguinte, foi impedido por decisão judicial de se aproximar da instituição.

Semanas depois, no dia 2 de outubro, se atirou de um andar alto de um shopping em Florianópolis. Um bilhete encontrado junto ao seu corpo dizia: “Minha morte foi decretada no dia do meu afastamento da universidade”. O suicídio gerou uma grande comoção e deixou a comunidade acadêmica ainda mais indignada com os rumos da operação.

Araújo acredita que qualquer investigação é importante, mas que ela deve ser feita "de forma efetiva", utilizando "a inteligência da PF". Ela aponta ainda para a falta de transparência da própria investigação. "Esses 80 milhões que a delegada falou… Onde ela viu isso? Da onde ela tirou essa informação?", questiona.

O EL PAÍS tentou sem sucesso falar com a Corregedoria-Geral da Polícia Federal sobre o tema. No último sábado, entretanto, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) divulgou uma nota repudiando as críticas e defendendo a delegada Erika Mialik Marena, responsável pelo caso. “Durante a primeira fase da investigação, professores da UFSC prestaram depoimentos sobre a existência de pressões do reitor para manter o quadro de irregularidades. Tais testemunhos foram fortalecidos pela comprovação documental de que o mandatário da universidade procurou interferir na atuação da própria Corregedoria da Universidade, que conduzia investigação preliminar sobre o caso”, apontou a entidade. Após lamentar a morte do reitor, acrescentou que a atuação da PF "foi absolutamente regular e devidamente autorizada pelo Judiciário" e que "não há erros que possam imputar ao Estado responsabilidades pelo suicídio" de Cancellier. "Logo, não se pode admitir que terceiros se utilizem da dor e comoção da família para tentar macular a imagem da Polícia Federal, mormente quando não se observa o mesmo empenho em questionar a forma como eram geridos aqueles recursos públicos", diz a nota.

Ataques orquestrados contra a universidade?

Outras ações foram levadas a cabo no último ano: em dezembro de 2016, a Operação Phd apurou supostos desvios de recurso de programas de incentivo à pesquisa na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); em fevereiro, a Operação Research investigava na Universidade Federal do Paraná (UFPR) um suposto repasse ilegal de recursos através de pagamentos fraudulentos de bolsas a pessoas sem vínculos com a instituição; em novembro deste ano, a Operação Estirpe apurou suposto superfaturamento e fraudes na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM); também em novembro, Operação Acrônimo acusou um ex-reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) de receber propina de uma gráfica numa licitação para impressão e distribuição de provas de concursos e vestibulares.

André Singer, cientista político da USP e ex-porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula, escreveu no último sábado em sua coluna na Folha de S. Paulo: "É óbvio que estamos diante de uma ação orquestrada e arbitrária, usando os mecanismos de exceção abertos pela conjuntura política, com o objetivo de desmoralizar o sistema público de ensino superior no Brasil".

Paralelamente a essas operações, tomadores de decisão e instituições como o Banco Mundial vêm questionando o atual modelo de gratuidade do ensino superior público, que em tempos de crise econômica vêm sofrendo cortes orçamentários. Além disso, intimidações, ataques, ameaças e tentativas de censura viraram rotina nos campus universitário.

"As três situações são simultâneas e enfraquecem a universidade, mas não é algo orquestrado", argumenta o filósofo e professor da USP Pablo Ortellado. "São coisas bem diferentes. E acho que entender a diferença entre elas ajuda a entender o que está acontecendo. As investigações sobre corrupção estão seguindo o padrão Lava Jato e acho que não tem nada de particular contra a universidade", acrescenta ele, que também fala em "abusos" do Judiciário, como a condução coercitiva do reitor da UFMG. "E isso é totalmente diferente da campanha a favor da cobrança de mensalidades que está aparecendo no governo Temer, no programa do PSDB, na posição de alguns veículos de comunicação e em órgãos como o Banco Mundial. Isso está vindo de um modelo de reforma da universidade para desonerar o Estado", explica. Já as ações de intimidação são provenientes de setores conservadores da sociedade, que acreditam que "a universidade é de esquerda e está doutrinando", argumenta.

Estado policial

Por outro lado, ainda que as operações anti-corrupção nas universidades sigam o padrão Lava Jato, elas já não atingem importantes políticos e empresários de grandes corporações. Mas sim uma classe acadêmica que até então parecia imune a eventuais abusos da polícia e do Judiciário, o que aumentou a sensação — também mencionada em tempos de Lava Jato — de que o Brasil caminha em direção a um Estado policial. Algo que, na verdade, nunca desapareceu das periferias brasileiras mesmo em tempos de democracia. "Podemos fazer um paralelismo com que aconteceu na ditadura. As pessoas falavam que começou a haver uma onda de tortura. Mas na verdade a tortura sempre foi e até hoje é endêmica no Brasil. Mas na ditadura, pessoas de classe média e alta começaram a ser torturadas em função de sua ideologia", explica o sociólogo Ignacio Cano, especialista em segurança pública da UERJ. "O que varia é o perfil das vítimas. As periferias sofrem sobretudo o abuso das polícias, e agora esses abusos da Lava Jato e nas universidades são orquestrados também e principalmente pelo Judiciário. Não são os típicos abusos de que a policia chega na casa da pessoa chutando a porta. Mas estão comprometendo o sistema político, e isso é muito grave", acrescenta.

Para ele, os eventuais abusos hoje cometidos durante as operações da PF e os que são cometidos nas periferias, embora tenham naturezas distintas, "têm a ver com o abuso do estado de direito, com ignorar os princípios e as normas em função de impulsos". A Lava Jato, diz o especialista, adquiriu "essa aura de cruzada moral contra a corrupção que permite ignorar os direitos das pessoas". Por isso, continua, "vemos o MPF justificar qualquer medida em função da luta contra a corrupção". A sensação, completa, "é de que não há limites".

Sobre as operações no ensino superior, observa que "até agora não vimos acusações de que esses professores, gestores ou reitores estivessem enriquecendo. Eram acusações de que o dinheiro não tinha sido gasto da forma que deveria. Eram questões administrativas e que se tornaram desculpas para tornar o caso um grande circo midiático". Já Bottino, professor de Direito da FGV Rio, lembra de de quando ministros do Supremo disseram que a Lava Jato fez com que a lei valesse para todos. "O que você não pode é querer é nivelar por baixo, e quando digo por baixo é nivelar por debaixo da lei. A condução coercitiva é o pau de arara da democracia. Não se pode comparar com a violência física da ditadura, mas a lógica de intimidação e de abuso é a mesma".