Trump e O Estado do Império

Donald Trump promete "um novo momento americano" mas as suas medidas vão privatizar projetos públicos e aumentar o fosso de desigualdade nos EUA. Na política externa move-se pesadamente, sem disfarçar o perigo que representa para os países sujeitos à ira do império

Por André Levy* 

Donald Trump - Divulgação

Na semana passada, o presidente Donald Trump proferiu o seu primeiro discurso de Estado da União perante uma sessão conjunta do Congresso, anunciando em tons messiânicos que estamos perante "um novo momento Americano". Este discurso anual é tipicamente usado para avaliar o estado da economia (Trump falsamente assumiu como sua responsabilidade o momento positivo), as recentes medidas implementadas e anunciar as principais propostas e orientações políticas.

O primeiro ano de presidência de Trump não foi um ano de grandes sucessos legislativos, apesar do Partido Republicano dominar ambas as câmaras do Congresso. Como logro mais significativo encontra-se a baixa de impostos que Trump tem descrito como o maior corte fiscal na história dos EUA. Esta foi uma entre muitas falsidades e distorções que Trump repetiu. Sendo sem dúvida de grande monta, segundo o Departamento de Tesouro, este corte representa 0,9% do PIB; menor que o corte de 2,89% do PIB implementado por Reagan em 1981, ou mesmo que dois cortes fiscais de Obama. O relevante não é julgar a hipérbole de Trump, mas determinar a cor da medalha da sua baixa de impostos, entender a quem beneficia, em quanto, durante quanto tempo. Torna-se então claro que este corte fiscal favorece os mais ricos: mais de três quartos dos cortes de IRS irão para quem tem rendimento superior a US$200 mil por ano, representando apenas 5% dos contribuintes. Além disso, enquanto estes cortes de IRS terminam em 2025, os cortes em IRC, beneficiando as empresas, são ilimitados.

A ilusão de que os benefícios fiscais irão depois "chover" sobre os trabalhadores, economia, etc. (o modelo trickle-down (1), há muito desacreditado) já está sendo contrariado pelas evidências: apenas 2.5% dos trabalhadores, menos de 126 milhões, irão ver os seus rendimentos aumentados como resultado da baixa de IRC. Segundo o grupo Americans for Tax Fairness, entre as empresas no Fortune 100, apenas 18 irão dar algum tipo de benefício aos seus trabalhadores. Poucas também têm sido as empresas a anunciar novos investimentos como resultado do "saldo" positivo. Algumas empresas limitaram-se a distribuir os benefícios entre os executivos e acionistas, chegando mesmo a anunciar despedimentos (como sucedeu na Kimberly-Clark).

Trump pediu ao Congresso que elabore uma lei que gere pelo menos US$1,5 trilhões para investimento em novas infraestruturas. Uma versão preliminar do plano refere que apenas US$200 mil milhões serão dinheiro federal (público), devendo o resto ser investimento privado, ou seja um enorme plano de concessões a privados. Paul Krugman, economista, alerta que nem toda a infraestrutura é atractiva ao investimento privado, isto é, tem potencial para dar lucro; e que mesmo nas infraestruturas que podem ser transformadas num negócio lucrativo (como as portagens de pontes e estradas), a construção e gestão por privados geralmente custa mais aos contribuintes que o investimento público. Conclui: "não estamos a falar de um programa para construir infraestrutura, mas um plano para converter o que deveriam ser projectos públicos em empreendimentos privados, presumivelmente com grandes benefícios fiscais".

A questão da imigração recebeu atenção particular, com Trump repetindo a falácia de associar os atuais programas para imigração e naturalização com a entrada de terroristas e criminosos dentro do país. Muitos outros temas foram referidos, incluindo referência à ordem executiva de manter aberta a prisão de Guantánamo. Divergindo do texto escrito e preparado, Trump acrescentou que novos capturados serão agora enviados para Guantánamo. Recorde-se que embora Obama não tenha cumprido a sua promessa de encerrar a prisão dos EUA na ilha de Cuba, durante a sua presidência não foram enviados novos presos para Gitmo, tendo uma população de 41 presos (face ao seu pico, em 2003, de 684).

Trump referiu-se ainda ao reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, recordando o voto esmagador na Assembleia Geral das Nações Unidas contra esta decisão dos EUA, e imediatamente afirmou que como os contribuintes dos EUA "enviam para estes mesmos países milhares de milhões de dólares em assistência cada ano" iria pedir ao congresso para passar legislação que assegure que assistência financeira dos EUA "sirva sempre aos interesses dos EUA, e vá apenas aos amigos dos EUA".

Referindo-se aos adversários dos EUA, mencionou o Irã, Cuba e a Venezuela, mas dedicou mais tempo à Coreia do Norte, que qualificou como "ditadura cruel" e de "caráter depravado" que constitui uma ameaça nuclear para os EUA. (Por contraste, mal mencionou a Rússia e China, referidos como adversários na recente Estratégia de Segurança Nacional). Neste sentido é preocupante que já anteriormente, no seu discurso, Trump tenha reafirmado a intenção de modernizar e reconstruir o arsenal nuclear dos EUA ‒ intenção aliás já antes declarada também por Obama. Trump chegou ao ponto de esperançar: "talvez um dia no futuro exista um momento mágico quando os países do mundo se reúnem para eliminar as suas armas nucleares. Infelizmente, ainda não estamos lá". Parecia ignorar a iniciativa histórica da campanha internacional para abolir as armas nucleares, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2017, que envolveu mais de 135 nações do mundo, e cujo resultado tratado precisa ser ratificado por Portugal. Trump estará mais interessado em saber que "botão vermelho" é maior, se o dele ou o de Kim Jong Un (os recentes falsos alarmes dos sistemas de alerta no Hawai e no Japão denotam um clima de enorme e generalizada tensão).

Créditos

Neste quadro, e a duas semanas das olimpíadas de inverno, que acontecerão na Coreia do Sul, o processo de nomeação do embaixador dos EUA à Coreia do Sul parece ter atingido uma barreira. Recorde-se que o processo de nomeação de embaixadores, outros diplomatas e funcionários dos Departamento de Estado se encontra atrasado, por falta de vontade política da administração Trump. Mas o Washington Post indicou recentemente que Victor Cha ‒ um acadêmico de origem Coreana, que serviu como Director da Ásia, sob Bush, na Conselho de Segurança Nacional, e é considerado como tendo postura mais predadora ("hawk") face à Coreia do Norte ‒ parece não ser mais considerado opção para o posto.

Cha já havia sido aprovado pelas revisões de segurança nos EUA, louvado na imprensa Sul Coreana, e aprovado pela Coreia do Sul no Agrément (o processo formal em política internacional onde um Estado aceita receber um diplomata estrangeiro). Havia alguma esperança que Cha fosse nomeado antes das olimpíadas. Mas depois caiu tudo por terra, possivelmente devido a divergências políticas sobre a estratégia face à Coreia do Norte ou mesmo face à Coreia do Sul, considerando que Trump já anunciou pretender rasgar o acordo de comércio livre com a Coreia do Sul, e na semana passada impôs novas tarifas aduaneiras sobre importações deste seu "parceiro".

O Pentágono tem declarado estar apostando em uma saída diplomática para o conflito com a Coreia do Norte, mas claramente explora outras possibilidades e considera todas as opções como possíveis, incluindo o uso de armas nucleares. Trump já havia afirmado antes que "se as temos, porque não usar", e no discurso do Estado da Nação afirmou que um reforço do arsenal é necessário para tornar o arsenal dos EUA "tão forte e poderoso que possa deter qualquer ato de agressão".

Evidentemente Trump acha que o atual gigantesco arsenal nuclear dos EUA ‒ com capacidade para destruir quatro vezes toda a superfície da Terra ‒ não é considerado suficientemente dissuasor. O que o Pentágono deseja são armas nucleares mais modernas, de menor intensidade mas teoricamente mais precisas (os chamados mini-nukes), consideradas mais tácticas, dando mais opções aos chefes militares. Mas a existência de tais armas, mais "aceitáveis", apenas faz aumentar a pressão sobre países ameaçados pelos EUA para desenvolverem o seu próprio arsenal destruidor.

Cha, porém, num recente artigo de opinião no Washington Post, argumentou contra a "estratégia de nariz sangrento", a ideia de que é necessário que os EUA demonstrem a sua determinação em perseguir todas as opções, lançando um ataque, fazendo Kim Jong-un sangrar pelo nariz. Pergunta Cha: "Se acreditarmos que Kim não pode ser parado sem um ataque desses, como podemos também acreditar que um ataque o vai impedir de responder ao mesmo nível? E se o Kim é imprevisível, impulsivo e quase irracional, como poderemos controlar uma escalada, o que presume que o adversário é capaz de compreender sinais e dissuasão?". Será Trump capaz de compreender "sinais e dissuasão"? Lembremos da sua ameaça de lançar "fogo e fúria" (expressão que deu o título ao recente livro de Michael Wolff, crítico de Trump e sua Administração) sobre a Coreia do Norte.