A morte de Edson Luiz e o paralelo com Mariele 50 anos depois

Um tiro em um restaurante estudantil matou Edson Luís de Lima Souto, secundarista de 18 anos, no dia 28 de março de 1968. A repressão das forças policiais era motivada por um protesto que pedia melhorias do Restaurante Central dos Estudantes, na Ponta do Calabouço, perto do Aeroporto Santos Dumont, Centro do Rio de Janeiro.

Edson Luiz Marielle Franco

Edson não tinha envolvimento com o ato ou com movimentos políticos. Vinha do Pará, de uma família pobre, para concluir seus estudos no curso de Madureza, hoje chamado Supletivo. Sua morte virou um marco. Passados 50 anos, ele volta ao debate, entre comparações de então e agora.

“Depois do enfrentamento que culminou na morte do Edson, fui eu que carreguei nos meus braços o corpo. Já com o corpo dentro da Assembleia, houve um debate sobre aceitar ou não que a polícia o levasse para autópsia. O movimento universitário presente aceitou, mas eu disse na hora: ‘o corpo não vai sair daqui’. Porque eu sabia que, se eles levassem, não iam voltar”, conta Geraldo Sardinha, que era da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (Fuec).

“A polícia queria levar o corpo para o IML (Instituto Médico Legal) sob a justificativa de fazer autópsia. Mas a gente viu quem foi que atirou, e o nosso medo era que eles distorcessem a situação do assassinato. Conseguimos que fosse feito lá mesmo, na Alerj. Dali para frente, eu vi uma multidão, que nunca antes havia se juntado a nossa luta, se aproximar”, conta Paulo. “Saímos para o enterro do corpo no Cemitério São João Batista, em Botafogo, enquanto gritávamos pelo Aterro do Flamengo chamando por todos os cariocas revoltados: “Mataram um estudante, podia ser seu filho!”.

Um tiro no coração do Brasil

O velório de Edson Luís na Alerj reuniu artistas e intelectuais como Di Cavalcanti, Leon Hirszman e Nara Leão. A imprensa estampou a foto de seu cadáver nas primeiras páginas. A capa do “Jornal do Brasil” de 29 de março trazia a manchete “Assassinato leva estudantes a greve nacional”. A Missa de 7° dia, no dia 4 de abril, na Candelária, reuniu milhares de manifestantes, freiras, padres, artistas e intelectuais, e a a entrada da igreja acabou servindo de palco para forte e violenta repressão policial.

O corpo do estudante sendo carregado em direção ao Cemitério São João Batista, em Botafogo,
ato que precedeu outras grandes mobilizações contra a violência política

“Foi um tiro no coração do Brasil. Goiás, Maranhão, Ceará, Bahia, lugares onde nunca havia tido manifestação política desde o início da ditadura, foram às ruas protestar contra aquela morte brutal. Boa parte de nós, estudantes, nos engajamos em organizações de resistência ao regime depois disto”, comenta Paulo Gomes.

Luiz Marques, professor do Departamento de História do IFCH /Unicamp, destaca que a ditadura começou a reprimir o movimento estudantil com muito mais violência após o episódio: “Com o assassinato de outros três manifestantes, além de vários feridos e centenas de presos, o movimento estudantil deixou de ser sobretudo estudantil e explodiu na famosa passeata dos 100 mil, em junho, que teve, ao que se diz, muito mais gente, de todas as camadas sociais”.

O professor de História Moderna e Contemporânea da UFRJ, Francisco Carlos Teixeira da Silva, concorda que antes da morte de Edson não houve episódio tão violento — neste sentido, foi um marco —, apesar de acreditar que não representou “uma mudança” histórica, mas “a representação dessa mudança”.

“Ele era uma figura anônima, nem era um dos grandes líderes, nem mesmo um dos mobilizadores do movimento estudantil. Ele estava ali usufruindo o que o Calabouço oferecia. A tragédia maior é exatamente esta. A ditadura mata um jovem brasileiro, que estava tentando vencer na vida”, analisa Francisco Teixeira.

Para o historiador e ex-membro da Comissão da Verdade do Rio, Lucas Pedretti, o assassinato de Edson Luís é um evento simbólico. “Vai contra o argumento de que a ditadura só teria matado e torturado quem pegava em armas, os considerados terroristas”, frisa Pedretti. “Este só foi o momento chave, porque setores da classe média, que antes apoiaram o golpe, percebem que havia algo de errado”, explica.

Luiz Marques reforça que o assassinato de Edson foi “o prelúdio do pior período da história do Brasil”: “Muitos jovens não sabem o que foi essa fase, porque não a sofreram na pele. Só esta ignorância e a agressividade imperante nas redes sociais podem explicar certas simpatias juvenis atuais por soluções de força”.

“Quantos mais vão precisar morrer?”

A pergunta da quinta vereadora mais votada nas eleições municipais do Rio, assassinada no dia 14 de março, Marielle Franco (PSOL-RJ), ecoa. A execução ocorrida há poucos dias do assassinato de Edson Luís completar 50 anos aqueceu o debate sobre o Estado militarizado.

O corpo da vereadora Marielle Franco é levado até a Câmara por amigos,
acompanhados por milhares de manifestantes

Luiz Marques ressalta que, se o critério primeiro da democracia é lidar com conflitos por outros meios que não a eliminação física do adversário, “então somos um dos países menos democráticos do mundo”.

“Os assassinatos de Edson em 1968, de Chico Mendes em 1988 e, agora, de Marielle Franco, entre milhares de outros defensores da democracia, são a prova cabal disso”, diz o professor. “O impeachment de Dilma Rousseff abriu a caixa de Pandora do cinismo, da corrupção e da violência. Quando essa caixa se abre, o que prevalece é sempre a força bruta. A morte de Marielle Franco é, talvez, um sintoma dessa deriva em direção à violência policial-militar”, avalia.

Pedretti aponta que a repercussão do assassinato de Marielle foi um fenômeno parecido com a reação popular ao episódio Edson Luís: “Não é só o assassinato brutal dos dois, mas o que eles carregam em termo de resposta da população”.

A morte de Marielle motivou manifestações pelo Rio, com presença de artistas como Débora Bloch e Chico Buarque, entre diversos atos no país e mundo afora.

Teixeira, por outro lado, pede cautela na comparação. “A história não se repete. O Brasil hoje é uma sociedade totalmente diferente do país provinciano de 1964”, alerta, ressaltando a diferença de trajetórias e situações entre as duas mortes: “Nossa geração (que viveu a ditadura civil-militar) que foi derrotada tem que ter a humildade de perceber que fracassamos e que talvez seja o momento de deixar os jovens tentarem uma resposta e não repetirem os erros que cometemos em 1968 e 1969”.

No Calabouço, lembra Geraldo, os estudantes eram, a maioria, filhos de nordestinos em busca de dias melhores: “Eu sou filho de camponês, saí da Bahia semianalfabeto. O Calabouço foi uma das coisas mais importantes da minha vida”. Cerca de 70% dos 7 mil estudantes que frequentavam o restaurante eram de baixa renda. Edson costumava fazer faxina no local em troca de comer no refeitório. Paulo Gomes, também ex-membro da Fuec, conta os detalhes daquele ato trágico: “Foi uma luta pela reabertura do Calabouço, restaurante fundado por Getulio Vargas e fechado durante a ditadura. Quando o estado reabriu depois de inúmeras pressões nossas, nos entregou em condições precárias, sem piso, caindo aos pedaços. Em uma das manifestações que fizemos por melhoria, a polícia apareceu e, por volta das 18h30 ou 19h, um cabo atirou covardemente no Edson a queima-roupa”. O corpo de Edson foi carregado então pelas ruas do Centro até a Santa Casa, para que um médico confirmasse o estado de óbito. Em seguida, foi levado à Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), onde hoje funciona a Câmara Municipal do Rio, na Cinelândia.