Guadalupe Carniel: A direita não cabe no verdadeiro futebol
Pejorativamente vemos por aí gente comentando “futebol não leva a nada”, é “pão e circo”, como se o futebol fosse apenas um esporte que dependesse da força e dos pés e não da cabeça.
Publicado 05/04/2018 13:07
Onde o futebol nasceu? Vira e mexe esta questão vem à tona. Uns dizem na China, outros no Egito, Japão, México… Ele era jogado sem limite de tempo ou jogadores, um povoado contra outro e não haviam regras como faltas, em alguns casos podendo estripar jogadores, como na região de Florença, na Itália. Aliás, quando o calcio chegou à Inglaterra, os reis tentavam de todas as formas acabar com aquele esporte que era considerado estúpido e sem utilidade. Mas quanto mais se proíbe, mais se gosta e não é diferente com o futebol. O que importa é: não importa onde ele era jogado, era jogado pelo povo. E para a elite, isso atrapalhava já que era como se o instinto animal se sobressaísse à razão, visto com horror.
Depois a lógica se inverteu, o futebol ganhou regras e era da Universidade de Cambridge. Mas não adiantaria muito: as pessoas jamais pararam de chutar bolas por aí. Portanto, era questão de tempo até as regras se popularizarem.
Então, o capitalismo descobriu que “o futebol, paixão das massas, dava divertimento e consolo e desviava a atenção das greves e dos maus pensamentos”, para citar Galeano.
Bom, e assim foi sendo levado, apenas como um esporte, que serve apenas para entreter. Assim como as redes sociais têm servido, onde tem sido baseada a vida das pessoas. Na última segunda-feira (2), o MBL (Movimento Brasil Livre) postou uma imagem de um bloco de carnaval e da torcida do Fluminense com a legenda: “Imagina toda essa gente indo às ruas para melhorar o país? Amanhã, dia 3 de abril, é dia de ir às ruas para lutar contra a impunidade e pela prisão dos corruptos".
No dia seguinte, foi a vez do Fluminense ir às redes e postar que “O Fluminense Football Club é uma instituição apolítica e reprova o uso indevido da imagem de sua torcida, camisa e pavilhão".
Por que eu falei tudo isso pra depois citar o Fluminense? Simplesmente para dizer que na lógica da direita o futebol é apenas o “pão e circo”, como se o futebol fosse apenas um esporte que dependesse da força e dos pés e não da cabeça e que pode ser usado como instrumento de manobra que não vai ter problema.
Ledo engano. Pipocam casos em que tanto jogadores como torcedores tiveram plena consciência do que estavam (e estão fazendo). Só para citar em jogadores, vamos com um clássico (já que é futebol, somos clássicos): Sócrates e Corinthians. O homem que conseguia transcender o futebol (onde era um jogador brilhante) e fazer com que pessoas que achavam que futebol era apenas um esporte passassem a gostar e se interessar pelo assunto a ponto de se tornarem ativistas. Um clube inteiro em prol da democracia, sendo aguerrido com o povo pelo povo.
Na Argentina temos Carrascosa que era o homem de confiança do Menotti, técnico da seleção da Argentina na Copa de 1978, mas que se recusou a jogar indo para Mar del Plata porque defendia suas convicções, “primeiro vem o homem, depois o futebol”. Temos ainda Reinaldo, Puskas, Kubala…
Se formos falar de torcidas, casos não faltam. Um dos mais emblemáticos em solo latino-americano é do dia 24 de outubro de 1981, em plena ditadura argentina, o Nueva Chicago jogava ante o Belgrano pelo acesso. Jogando em casa, estádio cheio, ganhando por 3 a 0. E então a torcida começou a cantar. Mas era a Marcha Peronista, em plena ditadura militar. Apesar do regime estar em plena decadência não tinha como a polícia ficar inerte a isso: 49 pessoas foram detidas. Como não tinham como levar tanta gente, alguns foram caminhando com as mãos pra trás. Mas os policiais não escaparam: quem estava pelas ruas apedrejou-os sem dó. Abaixo, segue um trecho de um depoimento de um torcedor detido naquele dia (o texto está no site do Chicago):
“Existiam três torcidas peronistas, a do Boca, Chacarita e Chicago. Levaram os torcedores caminhando até a delegacia. O pessoal de Los Perales reagiu atirando pedras na Cavalaria. Nesse tempo, você brigava na mão, ou no máximo, atirando uma pedra. O Chicago era hostilizado pela Polícia Federal. Você ía ao estádio ou até a esquina e era detido sem motivos. Sempre fomos uma torcida muito peronista e em Mataderos também haviam radicais e comunistas. O bairro sempre foi um lugar de resistência e luta, desde que tomaram o Frigorífico Lisandro de la Torre, quando 8 mil trabalhadores foram mandados pra rua. Por isso a ditadura devastou Mataderos, tiraram os cinemas e fecharam o Hospital Salaberry e com isso acabou a vida no bairro.”
Ou o que dizer da brilhante torcida Los de Abajo, de La U de Chile? Que entoava o clássico “somos los hinchas más anarquistas, los más borrachos, los más antifascistas” em plena era Pinochet?
Alguns exemplos são antigos, concordo. Mas, e as torcidas que têm se levantado e tentado reverter a lógica que se instaurou? De que o futebol pertence às elites e nada deve ser questionado, como se todos fôssemos vacas indo para um abatedouro e que vivem apenas de migalhas, já que o futebol não pertence mais ao povo com seus ingressos astronômicos apoiados por Federações e mídia? Ontem foi a vez do Vitória quebrar essa lógica e colocar 3 mil ingressos da final a dez reais (atitude que já foi criticada num Fla x Flu por um jornal esportivo, comparando a panos de chão o valor da entrada) e fazer todos se emocionarem com a história de um senhor que com lágrimas nos olhos após horas na fila conseguiu sua entrada.
Enquanto existem grupos que acreditam que o futebol é apenas o ópio do povo e narcotráfico da mídia, e que através dele pode-se manipular e dar a entender que manifestações populares na verdade servem apenas para gente sem consciência, vide que o Carnaval é uma manifestação cultural grandiosa, assim como o futebol, existe muito mais gente que resiste e que o fará voltar a ser de quem ele sempre foi. Do povo.