O cotidiano fantástico de Samanta Schweblin

Se nos anos 60 e 70 a América Latina teve o boom da literatura fantástica, hoje os jovens escritores fazem da crueza do cotidiano urbano seu principal impulso. Há dez anos, o Hay Festival publica a lista Bogotá-39, onde são eleitos os melhores escritores latino-americanos com menos de 40 anos. Em 2017, a argentina Samanta Schweblin foi um dos destaques, também considerada uma das 20 melhores escritoras contemporâneas de língua hispânica.

Por Mariana Serafini

Samanta Schweblin - Ilustração de Olavo Costa - Olavo Costa

De acordo com uma das juradas da Bogotá-39, Leila Guerriero, é possível dizer que a nova geração de escritores latinos têm algumas características em comum. A questão social não é um foco. Sem regionalismos, são urbanos e não tratam com peso as angústias da rotina nas metrópoles. Laços familiares, memórias de infância e relações entre adultos e crianças também são temas presentes. Samanta não escapa desta regra. Mas diferente de seus pares, ela resgata uma pitada do realismo fantástico e, de forma muito particular, traz de volta o cotidiano incômodo de seu conterrâneo Julio Cortázar.

Com dois, de seus quatro livros publicados no Brasil, a argentina mostra a que veio. Uma prosa que poderia ser apenas uma boa narrativa do cotidiano, mas que em algum momento causa um certo desconforto. É neste incômodo que mora o fantástico. Não se trata de grandes acontecimentos, é apenas a vida do cidadão comum que sofre um desajuste e não precisa de explicação. Cabe ao leitor conviver – ou não – com este vazio precipitado e desconfortável. Os silêncios, ou que “falta” ser dito, é justamente o ponto alto de Samanta.

Em seu primeiro livro de contos aclamado pela crítica, Pássaros na Boca, Samanta foi considerada uma herdeira de Cortázar. Mas não como alguém que repete o que já foi feito, e sim como uma escritora que propõe um novo experimentalismo em seu tempo. Em uma narrativa simples mas repleta de jogos psicológicos, ela coloca elementos irreais e deixa que o leitor busque uma explicação para algo que não necessariamente poderá ser resolvido. É esta sensação de vazio que a distancia dos escritores de sua geração.

Se no pós-guerra, muitos autores adeptos ao fantástico questionaram a humanidade com seus personagens desajustados, como é o caso de Cortázar em Bestiário, de 1951, neste século, a complexidade dos personagens de Samanta mora em questões aparentemente simples, que ganham densidade ao se tornarem o foco da narrativa. O individual, a fragilidade das relações humanas baseadas em plataformas digitais, e a dificuldade de se criar laços são temas presentes, mas não de forma óbvia ou explícita.

Depois de resgatar o realismo fantástico com mestria em seus contos, a autora se arriscou no romance. Em Distância de Resgate, publicado em 2017 no Brasil, trouxe um cenário tenso e completamente perturbador. Por mais que se diga que as questões políticas e sociais não estão na mira dos contemporâneos, este livro sobre a relação de uma jovem mãe e sua filha de pouco mais de dois anos parece abordar um problema individual a princípio, mas toda a narrativa se desenrola devido ao impacto de algo maior, que atinge também outras famílias.

A linha tensa que prende o leitor ao longo das 140 páginas não afrouxa em nenhum momento e também não se tensiona de forma que vá arrebentar. É um suspense na medida certa. Desde a primeira frase, “São como vermes”, até a última, o leitor se contorce em busca de uma explicação que estava o tempo inteiro suspensa no ar, ao ponto de parecer óbvia, mas impossível de ser tocada. Se depender de Samanta, a ficção latino-americana tem um futuro promissor.