O passaporte literário de Jorge Luis Borges

“Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B, que indique o lugar de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito”. Nessa calamidade autorreferente se organiza a biblioteca de Babel, do conto de Jorge Luis Borges, e toda a nossa cultura letrada.

Por Juliana Cunha*

Jorge Luis Borges - ilustração de Olavo Costa - Olavo Costa

Nos livros de não-ficção, rodapés e bibliografias deixam os diálogos e filiações mais claros. Nos de ficção, é preciso acumular uma quantidade mínima de leitura até repararmos que os livros estão todos conversando entre si; que abrir um livro, — qualquer livro —, é entrar de gaiato em uma conversa entre interlocutores nem sempre explicitados, mas inevitavelmente presentes.

Ler “O Aleph” é ouvir o eco de “A Divina Comédia”. Ler “O Imortal” é ler também a “Odisséia”. Ler “O Fim” é levar “Martín Fierro” de brinde. Ler cada um desses livros, poemas e contos é ao mesmo tempo já ter lido e precisar urgentemente ler os outros livros, poemas e contos com os quais eles conversam.

Borges é o bibliófilo por excelência. Uma vez, num rompante de modéstia (ou de total imodéstia, há de se pensar), ele disse ser melhor leitor do que escritor. Em sua biografia, a relação com os livros é clara: a descoberta do mundo através da biblioteca do pai, a anglofilia adquirida no contato com os livros da avó britânica, os castigos de infância envolvendo a apreensão de seus volumes favoritos pela mãe. Na juventude, fez resenhas, ensaios para revistas literárias, traduziu, trabalhou em uma biblioteca municipal.

Esse apego não a um ou a cem livros, mas à relação que todos os livros estabelecem entre si é algo que marca sua obra tanto das formas mais óbvias — a exemplo da erudição e do volume de referências a outros autores em seus textos —, quanto das mais imprevisíveis. Para o crítico Harold Bloom, Borges foi o escritor mais influente do século 20. “Qualquer um que o leia com frequência e atenção se converte em um borgeano”. Outro crítico americano, Donald A. Yates, notou como os textos do argentino “inspiram, convidam ou até mesmo pedem para ser comentados”, fazendo com que as respostas tanto críticas quanto literárias à sua obra se avolumem não apenas por ele ser um grande escritor, mas também pela forma peculiar com que seus textos incitam outros textos.

Estudiosos que trabalham com literaturas de países não-hegemônicos costumam notar como, uma vez reconhecidos, os grandes artistas da periferia tendem a ser associados a culturas mais centrais. No caso de Borges, é comum que se ressalte seu cosmopolitismo, os anos que passou na Europa, seu apego à língua e ao cânone da literatura inglesa. Isso por vezes age como uma forma sutil ou nem tanto de destituir a Argentina e a América Latina de um de seus maiores gênios. Contra esse movimento, o escritor Ricardo Piglia destaca que, entre 1923 e 1961, justamente quando escreveu boa parte de seus melhores contos, Borges não saiu de Buenos Aires uma única vez. Nesse período, continuou cosmopolita como sempre porque seu trânsito se dava entre livros e ele foi muito bem abastecido pelas livrarias francesas e inglesas e pelas bibliotecas de sua cidade natal. Ou seja: Borges é completamente argentino e suas filiações com o resto da cultura ocidental se dão antes por bibliofilia do que por anos passados no exterior, uma ideia que ele próprio defende em linhas gerais no texto “O escritor argentino e a tradição”, onde diz que, justamente por carecer de uma herança tão vasta quanto a europeia, cabe ao escritor argentino se apossar do espólio alheio.

Hoje, não há escritor argentino que não tenha de se haver com o fantasma de Borges, mas tampouco há brasileiros ou ingleses que não precisem pagar esse tributo. Em “Como e por que ler”, Bloom afirma que o conto moderno sempre bebe ou de Borges ou de Tchecov. A essa altura, muita água já passou por debaixo da ponte de Borges e foi toda ela docemente contaminada. O escritor pode não ter pisado na Argentina e nunca ter lido um Borges na vida e ainda assim certamente foi influenciado por um de seus interlocutores no grande diálogo dos livros.

"¿Cuál es la tradición argentina? Creo que podemos contestar fácilmente y que no hay problema en esta pregunta. Creo que nuestra tradición es toda la cultura occidental, y creo también que tenemos derecho a esa tradición, mayor que el que pueden tener los habitantes de una u otra nación occidental". (Borges)