Trate-me por Emilio Renzi

Ainda não assisti "327 Cuadernos" (2015), documentário de Andrés Di Tella sobre o escritor argentino Ricardo Piglia. "Os cuadernos" (capas pretas, das marcas Triunfo e Congreso) são os diários de Piglia, escritos desde 1957, quando o autor tinha 16 anos e se muda com a família de Adrogué – na Grande Buenos Aires – para Mar del Plata. Piglia escreveu os diários até perto de sua morte, em 2017. A escrita, ele diz nos cadernos, se parece mais com mania do que com vocação.

Por Luís Fernando Pereira*

Ricardo Piglia - ilustração de Olavo Costa - Olavo Costa

Resisto a assistir ao filme. Não sei se quero ver e ouvir a voz de Piglia na película. Gosto dessa voz que se formou, em silêncio, na minha leitura dos seus textos, sobretudo dos diários. Além do que, o próprio Piglia gostava e trabalhava com disfarces: na edição dos cadernos, quem fala é Emilio Renzi, alter ego do autor (seu nome completo era Ricardo Emilio Piglia Renzi). E gosto desse Piglia disfarçado – gosto desse costume velho de escritores disfarçando-se com seus narradores. Esse é o jogo.

A escolha por Emilio Renzi como autor-narrador dos diários estabelece um espaço móvel entre escritor, narrador e aquilo que é narrado. Um artifício de manipulação de vozes, identificações e distâncias que é um dos principais truques da ficção, ao menos desde o surgimento do romance, no século 19 (mas existente, de diversas formas, desde antes, desde “Robinson Crusoé”, desde Cervantes, desde a voz de Sócrates escrita por Platão). Um truque que Piglia dominava. Quem escreve, quem narra? O narrador viveu e presenciou aquilo que está narrando? O que é vida, o que é invenção? Autor e narrador são a mesma pessoa? Quando em ação no texto, essas perguntas colocam o leitor em risco e em jogo: o leitor confia no narrador? O leitor pode e deseja confiar no narrador? Se sim ou se não, o quanto há de confiança e desconfiança? E em relação a quê? Essas perguntas não têm resposta certa ou definitiva. E parte do truque é transformar tais dúvidas em labirintos, motores narrativos, atraindo e fazendo o leitor movimentar-se com a trama.

Alguns exemplos clássicos da técnica de ocultar/revelar o narrador: Flaubert começa assim “Madame Bovary” (1857): “Estávamos na sala de estudo, quando o diretor entrou, seguido de um novato vestido à paisana e de um servente carregando uma grande carteira” – nunca saberemos ao certo quem são esses narradores-testemunhas e nem como eles sabem tudo que sabem; Dostoiévski, em “Os Irmãos Karamázov” (1879): “Ao iniciar a biografia de meu herói Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov, acho-me tomado de certa perplexidade” – o narrador e Dostoiévski são a mesma pessoa? É um romance de ficção ou um romance biográfico? Existe, existiu Alieksiêi fora do livro?; e Melville, em “Moby Dick” (1851): “Trate-me por Ishmael. Há alguns anos – não importa quantos ao certo –, tendo pouco ou nenhum dinheiro no bolso, e nada em especial que me interessasse em terra firme, pensei em navegar um pouco e visitar o mundo das águas” – Ishmael é a voz do narrador-sobrevivente (que sobreviveu como?), misterioso desde o anúncio do próprio nome, que nos conta da luta do capitão Ahab com a baleia branca. E Ahab, por sua vez, segundo Piglia, é “uma força verbal que não existe sem a baleia branca”.

Esse truque de falar sobre Piglia através de outros livros e autores me soa natural e lógico. Não o conheci pela sua ficção. Conheci Piglia primeiro pelas suas habilidades de grande leitor que escreve sobre outros escritores. Seus livros “Formas Breves” (2000) e o “Último Leitor” (2006), ambos editados no Brasil pela Companhia das Letras, reúnem ensaios sobre outros autores/leitores – Borges, Che Guevara, Kafka, Joyce etc. Nesses dois livros, as reflexões e os ensaios sobre leitura e escrita têm a qualidade das boas narrativas: não conseguimos parar de ler e não queremos que o texto acabe. Piglia foi professor de literatura em instituições como Harvard e Princeton.

Depois dos ensaios, cheguei à edição dos cadernos. “Los Diarios de Emilio Renzi” estão divididos em três volumes: “Años de Formación” (2015), “Los Años Felices” (2016) e “Un Año em la Vida” (2017). No Brasil, o primeiro volume foi publicado pela editora Todavia em 2017 – são quase 400 páginas de registros, reflexões, comentários, histórias e projetos de histórias que têm lugar entre os anos de 1957 e 1967. Atravessamos com Renzi a província de Buenos Aires (Adrogué-Mar del Plata-Buenos Aires-La Plata) após a queda de Perón, em 1955. Acompanhamos o final de sua adolescência, sua entrada na universidade como estudante de história, a relação com o avô que é veterano da Primeira Guerra Mundial (e que guarda objetos e cartas dos mortos do front). Conhecemos, junto com Renzi, amores, amigos, trapaceiros, autores. Tudo girando ao redor da procura por viver uma vida de escritor. E os 327 cadernos são essa vida que busca uma forma de viver a escrita.

Trata-se de uma obra literária maior. A prosa de Piglia é fluente, ágil, rica. Às vezes, complexa e trabalhada a tal ponto que parece orgânica, simples. Como se aquelas palavras, naquela ordem, sempre tivessem existido. O melhor exemplo é “Seixos Rolando”, texto que amarra e encerra o primeiro volume, com uma fluência, uma graça e um equilíbrio narrativos espantosos diante do uso de tantas vírgulas, parágrafos longos, cortes de continuidade, camadas de tempo e digressões. Esse texto acompanha, assim, o que se produziu e se produz de melhor na sintaxe barroca do continente. E da melhor maneira, isto é, sem sequer parecer fazê-lo.

Quanto ao documentário, consegui baixá-lo de um blog há pouco, mas não sei se vou mesmo vê-lo. Não quero que o filme coloque em risco o jogo que tenho com Piglia. Acho que aprendi nos diários e nos ensaios que, quanto mais há espaços movediços entre autor, narrador, texto e leitor, mais vivo o livro (e tudo ao redor) se torna. É uma contradição: a ilusão de que a obra tem autonomia, vida própria, de que não depende de nada nem de ninguém para existir, exige do leitor (e de tudo ao redor) maior participação. E isso é um paradoxo e uma técnica e um mistério. E Piglia praticou e enfrentou tudo isso, com precisão, astúcia e persistência.

Depois de terminar o primeiro volume dos diários, comprei “La Invasión”, o primeiro livro de Piglia, um livro de contos publicado em 1967 e que nunca tinha sido reeditado. Até 2006. No prólogo da nova edição, ele explica que releu e revisou várias vezes os dez contos originais e que realizou modificações e ajustes. Mas “en general se trató sobre todo de cortes y de supresiones. Ya sabemos que – como decía Hemingway – todo lo que podamos sacar de un cuento, lo va a mejorar”.

No melhor de sua escrita, Piglia não deixa de ser um bom leitor e de seguir os bons conselhos dos autores que admira. Só me resta a tentativa de fazer o mesmo. Apago a cópia do documentário do meu computador. Suprimo e corto o filme do meu jogo com Piglia. Esvazio a lixeira e limpo o histórico do navegador. Queimo as pontes, afundo os barcos. Olho adiante. Os diários têm mais dois volumes. Viva Emilio Renzi.