Procurador diz ‘Fora, Temer’ e vira alvo de processo no CNMP

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) instaurou um processo administrativo disciplinar (PAD) para apurar irregularidades em um discurso do procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, do Ministério Público do Paraná (MPPR), na IV Conferência Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Paraná. Ao final, falou no microfone: "Fora, Temer".

olympio sotto maior neto

“Ao assim proceder, o processado deixou de observar o dever legal de guardar decoro pessoal e de manter conduta pública ilibada, atentando contra a dignidade de suas relevantes funções e o prestígio do Ministério Público”, diz a portaria CNMP-CN 0106, do dia 9 de abril.

Segundo o CNMP, o procurador pode ter incorrido em uma infração disciplinar com previsão no artigo 155, inciso I, da Lei Orgânica do MPPR. A punição para o caso seria a de advertência. O caso foi tornado público pelo jornal Contraponto.

O episódio ocorreu em fevereiro deste ano, na IV Conferência Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Paraná. Na ocasião, ele ressalvou que “talvez o Ministério Público não devesse estar falando isso, mas ‘Fora, Temer'” (veja o vídeo acima).

Com 41 anos de carreira no MPPR, Sotto Maior já foi procurador-geral paranaense em quatro ocasiões. Trabalhou na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), defendendo o texto no Congresso. Atualmente, coordena o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos.

Ele coordenou a Comissão Estadual da Verdade, que investigou violações aos direitos humanos ocorridas no Estado do Paraná no período da ditadura militar. O relatório final foi entregue em novembro do ano passado.

“Fora este estado de coisas”

Em resposta ao Corregedor Nacional do Ministério Público, Sotto Maior explicou que a expressão quis dizer “‘fora este estado de coisas’ ou ‘fora essa política governamental que significa retrocesso no avanço civilizatório já alcançado pela democracia brasileira'”.

“O ‘fora, Temer’ no final de minha fala brotou da incontida indignação com a política desencadeada a galope pelo governo federal que, num contexto de reconhecida corrupção e de retrocesso na perspectiva dos direitos humanos, importa desmonte da administração pública, com reforço ao equivocado discurso neoliberal no sentido do Estado Mínimo (por isso mesmo sendo cotidianamente sucateado) e deixando para a “mão invisível do mercado” a regulação inclusive das questões sociais, mesmo sabendo-se não ter ela olhos para enxergar ou coração para atender os milhões de brasileiros que ainda padecem de subcidadania, assim como de opressão, exploração e exclusão social“, escreveu o procurador.

Reação jurídica

A possibilidade de sanção mobilizou o meio jurídico. A Rede de Justiça pelos Direitos Humanos (REJUDH), grupo que reúne juízes, promotores e defensores públicos do Paraná, fez uma nota de apoio a Sotto Maior.

“A pretendida punição ao Procurador representa lamentável afronta ao direito constitucional à liberdade de expressão e pensamento, pedra-de-toque dos regimes democráticos modernos. Se por um lado é certo que agentes públicos devem manifestar-se com maior zelo, de outro é inconcebível que, sob tal justificativa, pretenda-se impor verdadeira mordaça àqueles que expressem suas opiniões nos limites da lei e da Constituição Federal, sem violação aos deveres funcionais”, afirma a nota, que foi assinada por 430 juízes, promotores, advogados e acadêmicos.

Segundo a REJUDH, membros do MP não perdem sua condição de cidadãos, ainda que ocupem cargo público, e não podem ter “cerceado seu direito à liberdade de expressão e pensamento, inerente à condição humana”.

“É preocupante que, mesmo após a superação do regime de exceção instaurado no país em 1964, marcado por constantes violações à dignidade da pessoa humana, os direitos e garantias fundamentais continuem a sofrer sérias restrições, em manifesto retrocesso e ofensa ao Estado Democrático de Direito inaugurado em 1988”, diz a REJUDH.

“Linha tênue”

Para o procurador de Justiça Charles Hamilton, do Ministério Público do Estado de Pernambuco (MP-PE), o momento “extremamente polarizado” pelo qual o país passa exige ponderação a membros do MP e magistrados.

“Assistimos, até pelo formato das redes sociais com bolhas, a uma exacerbação do sentimento de intolerância”, avalia. “O risco é grande de ser mal interpretado. É uma linha tênue e fica difícil, num momento extremamente polarizado, identificar os limites.”

Ele lembra que essa orientação vale sobretudo para membros do MP e magistrados pela vedação de atividades político-partidárias à qual estão sujeitos de acordo com a Constituição Federal.

O promotor Frederico Ceroy, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), argumenta que a sociedade, como um todo, tem sido vítima do “mecanismo da atenção”. “Nos últimos anos, no contexto da discussão das bolhas nas redes sociais, se descobriu que a polarização gera atenção”, avalia. “Todos somos vítimas de um sistema que gera polarização e fomenta vaidades.”

É nesse contexto, avalia, que o Ministério Público tem de enfrentar o desafio de filtrar o que são meras opiniões, do que é exagero e o que é atividade politico-partidária.

“Ao expressar uma opinião, na maioria das vezes o promotor exerce a atividade da sua capacidade eleitoral ativa. A vedação da Constituição é falar com interesse partidário. Mas dizer alguma coisa como eleitor é totalmente diferente”, diz Ceroy. “A pedra de toque para se entender se é infração às leis é visualizar como o promotor está dizendo isso. Se for como eleitor, está exercendo sua cidadania. E o limite disso está no crime, como uma difamação, por exemplo.”

O promotor José Reinaldo Guimarães, do Ministério Público de São Paulo, defende que o grande avanço do MP, como instituição, se deve à liberdade de seus membros, no exercício de suas atribuições, poder expressar livremente aquilo que pensam.

“Promotores e procuradores falam em nome da sociedade que representam. Há necessidade de ter muito respeito com as promoções deles, sob pena de se construir para o futuro um MP amordaçado”, pondera Guimarães.

Ele também avalia que as pessoas precisam aprender a conviver de maneira democrática com a liberdade de expressão. “Todo mundo acha que o que se afasta do próprio convencimento é excesso de de liberdade de expressão. A liberdade de expressão é um bem supremo do direito constitucional moderno. O respeito por ela passa pela possibilidade de ouvirmos ou lermos algo que nos desagrade e simplesmente respeitarmos.”

Segundo o CNMP, o Processo Administrativo Disciplinar 1.00338/2018-34 foi distribuído ao conselheiro relator Erick Venâncio, “a quem cabe submeter a instauração ao referendo do Plenário do Conselho Nacional do Ministério Público”. O prazo para a finalização do procedimento é de 90 dias.