Salão de Abril ratifica arte como ferramenta de diálogo e contestação

Uma das principais expressões da arte cearense, a 69ª edição do Salão de Abril se consolida como um dos principais eventos de artes plásticas do Estado e um dos mais prestigiados e concorridos do País. As temáticas das exposições são as mais variadas, inclusive o reflexo da atual realidade pelo qual passa o país, de ameaças aos direitos e à democracia.

Salão de Abril ratifica arte como ferramenta de diálogo e contestação - Fernanda Cavalli

Um dos 45 artistas selecionados para expor na mostra, que acontece na Casa do Barão de Camocim e que ficará disponível até o dia 26 de junho, traz o protesto como essência de seu trabalho. O trabalho apresentado pelo Coletivo Aparecidos Políticos propõe, através de sua intervenção artística, reforçar uma contra-ofensiva às censuras às artes. Denomina “Intervenção Contra Intervenção”, a obra tem o objetivo de repassar metade da premiação recebida para intervir nos ataques conservadores. “A ideia é criar uma espécie de retroalimentação em que, quanto mais se ataque ou censure um artista ou movimento social, mais financiamento e mais apoio simbólico ele ganha”.

E não são poucos os casos de obras censuradas nos últimos meses. A mais recente, escolhida pelo coletivo para R$ 50 por dia, até quando estiver censurada, é a obra do pintor e quadrinista Gidalti Moura Jr, ganhadora do Prêmio Jabuti 2017, que mostra um personagem de rua sendo perseguido por um policial com um cassetete na mão. Ela foi censurada da exposição em que se encontrava, no Parque Shopping Belém, no Pará.

Há ainda outros casos como censura à exposição Queermuseu e ataques ao curador Gaudêncio Fidelis, em Porto Alegre; difamações contra o coreógrafo Wagner Schwartz e o Museu de Arte Moderna de São Paulo; proibição de realização de uma exposição no Museu de Arte do Rio; censura à artista Simone Barreto, em Fortaleza e patrulhas conservadoras em exposições de Minas Gerais e da artista Alessandra Cunha, em Mato Grosso do Sul.

Caráter democrático

Para Gilvan Paiva, secretário da Cultura de Fortaleza, a curadoria do 69º Salão de Abril reforça o caráter contestador da mostra e da arte. “Este Salão apresenta arte contemporânea, com uma leitura multifacetada da realidade em que a gente vive. Além desta obra do Coletivo Aparecidos Políticos, várias outras manifestações também denunciam este período que atravessamos, quer seja fotografia, gravuras e mais instalações. Por isso tudo, o Salão é uma expressão viva desta ambiência de contradições, receios, medos e possibilidades, tornando-se um caldeirão de impressões”, enaltece.

Sobre a intervenção do Coletivo, Gilvan Paiva considera que a arte e a iniciativa por eles apresentadas dialogam com a liberdade e expõem a intolerância. “A arte tem a capacidade de contestar e de estar à frente da nossa frente. Os artistas, com sua imensa sensibilidade, se antecipam e nos alertam para o que precisa ser feito. Neste caso pela defesa da cidadania e pela garantia de seus direitos. E é neste cenário que o Salão de Abril retoma neste ano especial, que comemora 75 anos e homenageia Zenon Barreto, inserido e dialogando com tudo o que passa o Brasil. As mostras capturam aquilo o que a sociedade precisa olhar e denunciam o perigo da intolerância, da censura, do crescimento do fascismo e de tudo aquilo que castra e reprime o ser humano”, avalia.

Sobre o Coletivo Aparecidos Políticos

O Coletivo Aparecidos Políticos tem histórico de atuação em denunciar abusos contra a liberdade. Criado em outubro de 2009, com a chegada dos restos mortais do cearense Bergson Gurjão Farias, após 37 anos do desaparecimento dele pela Ditadura Militar o coletivo vem realizando, ao longo desses anos, várias atividades, sempre com o intuito de promover a luta por memória, verdade e justiça. São intervenções urbanas, como os rebatismos populares, que dão novos nomes a locais que ainda se referem a apoiadores da Ditadura. A proposta do grupo é trabalhar numa relação estreita entre a arte e a política.

Em Fortaleza, realizaram o projeto “Conexões Cartográficas da Memória”, fruto de cinco anos de pesquisas. O trabalho apresenta um mapeamento sobre locais que ainda se referem à Ditadura Militar na capital cearense. São prédios, ruas e avenidas, praças e até escolas e creches que ainda homenageiam colaboradores de um dos períodos mais duros da história do país. O coletivo aponta mais de 35 espaços e equipamentos públicos que ainda se remetem a torturadores e apoiadores. Locais como a Avenida Castelo Branco (Leste-Oeste) e as escolas Presidente Médici e Murilo Borges fazem parte deste mapeamento.

Mais

O 69º Salão de Abril celebra os 75 anos de história da mostra e homenageia os 100 anos do multiartista Zenon Barreto, autor da escultura Iracema Guardiã, um símbolo da cidade de Fortaleza.

A mostra ficará aberta à visitação do público até o dia 26 de junho.

Foram submetidas, no total, 482 obras de 304 artistas à curadoria, formada por Paulo Klein, Carlos Macêdo, Paloma Santa Rosa e Paulo Amoreira.

O anúncio dos 30 premiados será realizado no dia 17 de maio, em evento na Casa do Barão de Camocim. A premiação totaliza R$ 190 mil, equivalente a R$ 15 mil para os quatro primeiros colocados e R$ 5 mil para os demais.

Na programação do 69º Salão de Abril, além da mostra, há ainda oficinas de artes visuais, palestras, workshops, apresentações de dança e de produtos audiovisuais e outras ações formativas.