Concreto pensado, síntese de múltiplas determinações

O mundo real, concreto, não é refletido pelo cérebro dos homens como uma câmara fotográfica, ou um espelho, reflete as imagens. O cérebro as reflete como um concreto pensado, como um construto cerebral. Este ensinamento fundamental de Marx diferencia o materialismo dialético do materialismo antigo, próprio do século 18, e herdado pelo pensamento cientificista burguês de nosso tempo.

Neste texto de 1859, reproduzido aqui na íntegra, Marx definiu de maneira precisa este traço fundamental do materialismo moderno que fundou, o materialismo dialético.

O Método da Economia Política

Ao estudarmos um determinado país do ponto de vista da sua economia política, começamos por analisar a sua população, a divisão desta em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos da produção, a exportação e a importação, a produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias, etc.

Parece correto começar pelo real e o concreto, pelo que se supõe efetivo; por exemplo, na economia, partir da população, que constitui a base e o sujeito do ato social da produção no seu conjunto. Contudo, a um exame mais atento, tal revela-se falso. A população é uma abstração quando, por exemplo, deixamos de lado as classes de que se compõe. Por sua vez, estas classes serão uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que se baseiam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes últimos supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem os preços, etc.

Por conseguinte, se começássemos simplesmente pela população, teríamos uma visão caótica do conjunto. Por uma análise cada vez mais precisa chegaríamos a representações cada vez mais simples; do concreto inicialmente representado passaríamos a abstrações progressivamente mais sutis até alcançarmos as determinações mais simples. Aqui chegados, teríamos que empreender a viagem de regresso até encontrarmos de novo a população – desta vez não teríamos uma idéia caótica de todo, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações.

Tal foi historicamente, a primeira via adotada pela economia política ao surgir. Os economistas do século XVII, por exemplo, partem sempre do todo vivo: a população, a nação, o Estado, vários Estados, etc.; no entanto, acabam sempre por descobrir, mediante a análise, um certo número de relações gerais abstratas determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor, etc. Uma vez fixados e mais ou menos elaborados estes fatores começam a surgir os sistemas econômicos que, partindo de noções simples trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca – se elevam até ao Estado, à troca entre nações, ao mercado universal. Eis, manifestamente, o método científico correto.

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso. Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, e não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida, e, portanto, também, o ponto de partida da intuição e da representação. No primeiro caso, a representação plena é volatilizada numa determinação abstrata; no segundo caso, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento. Eis por que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que, partindo de si mesmo se concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo e se movimenta por si mesmo; ao passo que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é, para o pensamento, apenas a maneira de se apropriar do concreto, de o reproduzir na forma de concreto pensado; porém, não é este de modo nenhum o processo de gênese do concreto em si. Com efeito, a mais simples categoria econômica – por exemplo, o valor de troca – supõe uma população, população essa que produz em condições determinadas; supõe ainda um certo tipo de família, ou de comunidade, ou de Estado, etc. Tal valor não pode existir nunca senão sob a forma de relação unilateral e abstrata, no seio de um todo concreto e vivo já dado. Pelo contrário, como categoria, o valor de troca tem uma existência anti-diluviana.

Assim, para a consciência filosófica – que considera que o pensamento que concebe é o homem real, e que, portanto, o mundo só é real quando concebido -para esta consciência, é o movimento das categorias que lhe aparece com um verdadeiro ato de produção (o qual recebe do exterior um pequeno impulso, coisa que esta consciência só muito a contra gosto admite que produz o mundo.

Isto é exato (embora aqui nos vamos encontrar com uma nova tautologia, na medida em que a totalidade concreta, enquanto totalidade do pensamento, enquanto concreto do pensamento é in fact um produto do pensamento, do ato de conceber; não é de modo nenhum, porém, produto do conceito que pensa e se gera a si próprio e que atua fora e acima da intuição e da representação; pelo contrário, é um produto do trabalho de elaboração, que transforma a intuição e a representação em conceitos. O todo, tal como aparece na mente como um todo pensamento, é produto da mente que pensa e se apropria do mundo do único modo que lhe é possível; modo que difere completamente da apropriação desse mundo na arte, na religião, no espírito prático. O sujeito real conserva a sua autonomia fora da mente, antes e depois, pelo menos durante o tempo em que o cérebro se comporte de maneira puramente especulativa, teórica. Por consequência, também no método teórico é necessário que o sujeito – a sociedade – esteja constantemente presente na representação como ponto de partida.

Mas não terão também estas categorias simples uma existência histórica ou natural autônoma anterior às categorias concretas? Ça dépend; Hegel, por exemplo, tem razão em começar a sua Filosofia do Direito pela posse, a mais simples das relações jurídicas entre indivíduos; ora não existe posse antes da família ou das relações de servidão e dominação, que são relações muito mais concretas

[…]

O trabalho parece ser uma categoria muito simples; e a idéia de trabalho nesse sentido – isto é trabalho, sem mais – é muito antiga. No entanto, tomando esta sua simplicidade do ponto de vista econômico, o "trabalho" é uma categoria tão moderna como as relações que originam esta mesma abstração simples.

(…)

Poderia agora parecer que se encontrou muito simplesmente a expressão abstrata da mais antiga e mais simples relação que, na sua qualidade de produtores, os homens estabeleceram entre si – e isto independentemente da forma da sociedade. Isto é verdadeiro num sentido, e falso noutro. Com efeito, a indiferença em relação a toda a forma particular de trabalho supõe a existência de um conjunto muito diversificado de gêneros reais de trabalho, nenhum dos quais predomina sobre os outros. Assim as abstrações mais gerais apenas podem surgir quando surge o desenvolvimento mais rico do concreto, quando um elemento aparece como o que é comum a muitos, como comum a todos. Então, já não pode ser pensado unicamente como forma particular.

Por outro lado, esta abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado intelectual de um todo concreto de trabalhos: a indiferença em relação a uma forma determinada de trabalho corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos podem passar facilmente de um trabalho para outro, sendo para eles fortuito – e portanto indiferente – o gênero determinado do trabalho. Nestas condições, o trabalho transformou-se – não só como categoria, mas na própria realidade – num meio de produzir riqueza em geral e, como determinação já não está adstrito ao indivíduo como sua particularidade. Este estado de coisas atingiu o seu maior desenvolvimento na forma mais moderna das sociedades burguesas – os Estados Unidos; consequentemente, só nos Estados Unidos a categoria abstrata "trabalho", "trabalho em geral", trabalho sans phrase – ponto de partida da economia moderna – se tornou uma verdade prática. Deste modo, a abstração mais simples – que a economia moderna põe em primeiro plano, como expressão de uma relação antiguíssima e válida para todas as formas de sociedade – só vem a aparecer como verdade prática- e com este grau de abstração – enquanto categoria da sociedade moderna.

(…)

A sociedade burguesa é a mais complexa e desenvolvida organização histórica da produção. As categorias que exprimem as relações desta sociedade, e que permitem compreender a sua estrutura, permitem-nos ao mesmo tempo entender a estrutura e as relações de produção das sociedades desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se ergueu, cujos vestígios ainda não superados continua a arrastar consigo, ao mesmo tempo que desenvolve em si a significação plena de alguns indícios prévios, etc. A anatomia do homem dá-nos uma chave para compreender a anatomia do macaco. Por outro lado as virtualidades que anunciam uma forma superior nas espécies animais inferiores só pode ser compreendidas quando a própria forma superior é já conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa dá-nos a chave da economia da Antiguidade, etc., – embora nunca à maneira dos economistas, que suprimem todas as diferenças históricas e vêm a forma burguesa em todas as formas de sociedade. Podemos compreender o tributo, a dízima, etc., quando conhecemos a renda fundiária; mas não há razão para identificar uns com a outra. Além disso, como a sociedade burguesa não é em si mais do que uma forma antagônica do desenvolvimento histórico, certas relações pertencentes a sociedades anteriores só aparecem nesta sociedade de maneira atrofiada, ou mesmo disfarçada. Por exemplo, a propriedade comunal. Por conseguinte, sendo embora verdade que as categorias da economia burguesa são até certo ponto válidas para todas as outras formas de sociedade, tal deve ser admitido cum grano salis; podem conter essas formas de um modo desenvolvido, ou atrofiado, ou caricaturado, etc.; porém, existirá sempre uma diferença essencial. A invocação da chamada evolução histórica repousa geralmente no fato de que a última forma de sociedade considera as outras como simples etapas que a ela conduzem e, dado que só em raras ocasiões, só em condições bem determinadas, é capaz de fazer a sua própria crítica – não falamos, claro, dos períodos históricos que se consideram a si próprios como uma época de decadência – concebe sempre essas etapas de um modo unilateral. A religião cristã só pode contribuir para que se compreendessem de um modo objetivo as mitologias anteriores, quando se prontificou até certo ponto, por assim dizer virtualmente, a fazer a sua própria auto-crítica. Do mesmo modo, a economia burguesa só ascendeu à compreensão das sociedades feudal, clássica e oriental, quando começou a criticar-se a si própria. A crítica a que a economia burguesa submeteu as sociedades anteriores – especialmente o feudalismo, contra o qual a burguesia teve de lutar diretamente – assemelha-se à critica do paganismo pelo cristianismo, ou até à do catolicismo pelo protestantismo – isto quando não se identificou pura e simplesmente com o passado, fabricando a sua própria mitologia.
Como, em geral, em toda a ciência histórica, social, ao observar o desenvolvimento das categorias econômicas há que ter sempre presente que o sujeito – neste caso a sociedade burguesa moderna – é algo dado tanto na realidade como na mente; e que, por conseguinte, essas categorias exprimem formas e modos de existência, amiudadamente simples aspectos desta sociedade, deste sujeito; e que, portanto, mesmo do ponto de vista científico, esta sociedade não começa a existir de maneira nenhuma apenas a partir do momento em que se começa a falar dela como tal. Uma regra a fixar, pois dá-nos elementos decisivos para o [nosso] plano [de estudo]. Por exemplo, parecia naturalíssimo começar [a nossa análise] pela renda imobiliária, pela propriedade agrária, pois estão ligadas à terra, fonte de toda a produção e de toda a existência, e também àquela que foi a primeira forma de produção de todas as sociedades mais ou menos estabilizadas – a agricultura; ora, nada seria mais errado do que isto; em todas as formações sociais, existe uma produção determinada que estabelece os limites e a importância de todas as outras e cujas relações determinam, portanto, os limites e importância das outras todas. E a iluminação geral que banha todas as cores e modifica as suas tonalidades particulares. como um éter particular que determina o peso específico de todas as formas de existência que nele se salientam.

(…)

Estabelecer claramente a divisão [dos nossos estudos] de maneira tal que [se tratem]:

1) As determinações abstratas gerais mais ou menos válidas para todas as formas de sociedade, mas no sentido atrás exposto.

2) As categorias que constituem a estrutura interna da sociedade burguesa, sobre as quais repousam as classes fundamentais. O capital, o trabalho assalariado, a propriedade agrária; as suas relações recíprocas. A cidade e o campo. As três grandes classes sociais; a troca entre estas. A circulação. O crédito (privado).

3) Síntese da sociedade burguesa, sob a forma de Estado, considerada em relação consigo própria. As classes "improdutivas". Os impostos. A dívida pública. O crédito público. A população. As colônias. A emigração.

4) As relações internacionais da produção. A divisão internacional. A exportação e a importação. Os câmbios.

5) O mercado mundial e as crises.