O difícil começo de uma ciência nova

Neste prefácio à primeira edição de O Capital (1867), Marx explica os objetivos de sua obra e as dificuldades para concretizá-la

marx o capital

Prefácio à primeira edição de O Capital

A obra, cujo primeiro volume apresento ao público, é a continuação de meu escrito Contribuição à crítica da economia política, publicado em 1859. A longa pausa entre começo e continuação se deve a uma enfermidade que me acometeu por muitos anos e interrompeu repetidas vezes meu trabalho.

O conteúdo daquele texto está resumido no primeiro capítulo deste volume, e isso não só em nome de uma maior coerência e completude. A exposição foi aprimorada. Na medida em que as circunstâncias o permitiram, pontos que antes eram apenas indicados foram aqui desenvolvidos, ao passo que, inversamente, aspectos que lá foram desenvolvidos em detalhes são aqui apenas indicados. As seções sobre a história da teoria do valor e do dinheiro foram naturalmente suprimidas. No entanto, o leitor do texto anterior encontrará novas fontes para a história daquela teoria nas notas do primeiro capítulo.

Todo começo é difícil, e isso vale para toda ciência. Por isso, a compreensão do primeiro capítulo, em especial da parte que contém a análise da mercadoria, apresentará a dificuldade maior. No que se refere mais concretamente à análise da substância e da grandeza do valor, procurei popularizá-las o máximo possível. A forma de valor, cuja figura acabada é a forma-dinheiro, é muito simples e desprovida de conteúdo. Não obstante, o espírito humano tem procurado elucidá-la em vão há mais de 2 mil anos, ao mesmo tempo que obteve êxito, ainda que aproximado, na análise de formas muito mais complexas e plenas de conteúdo. Por quê? Porque é mais fácil estudar o corpo desenvolvido do que a célula que o compõe. Além disso, na análise das formas econômicas não podemos nos servir de microscópio nem de reagentes químicos. A força da abstração deve substituir-se a ambos. Para a sociedade burguesa, porém, a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma de valor da mercadoria, constitui a forma econômica celular. Para o leigo, a análise desse objeto parece se perder em vãs sutilezas. Trata-se, com efeito, de sutilezas, mas do mesmo tipo daquelas que interessam à anatomia micrológica.

Desse modo, com exceção da seção relativa à forma de valor, não se poderá acusar esta obra de ser de difícil compreensão. Pressuponho, naturalmente, leitores desejosos de aprender algo de novo e, portanto, de pensar por conta própria.

O físico observa processos naturais, em que eles aparecem mais nitidamente e menos obscurecidos por influências perturbadoras ou, quando possível, realiza experimentos em condições que asseguram o transcurso puro do processo. O que pretendo nesta obra investigar é o modo de produção capitalista e suas correspondentes relações de produção e de circulação. Sua localização clássica é, até o momento, a Inglaterra. Essa é a razão pela qual ela serve de ilustração principal à minha exposição teórica, mas, se o leitor alemão encolher farisaicamente os ombros ante a situação dos trabalhadores industriais ou agrícolas ingleses, ou se for tomado por uma tranquilidade otimista, convencido de que na Alemanha as coisas estão longe de ser tão ruins, então terei de gritar-lhe: De te fabula narratur [A fábula refere-se a ti]! e

Na verdade, não se trata do grau maior ou menor de desenvolvimento dos antagonismos sociais decorrentes das leis naturais da produção capitalista. Trata-se dessas próprias leis, dessas tendências que atuam e se impõem com férrea necessidade. O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro.
Mas deixemos isso de lado. Onde a produção capitalista se instalou plenamente entre nós – por exemplo, nas fábricas propriamente ditas –, as condições são muito piores que na Inglaterra, pois aqui não há o contrapeso das leis fabris. Em todas as outras esferas, atormenta-nos, do mesmo modo como nos demais países ocidentais do continente europeu, não só o desenvolvimento da produção capitalista, mas também a falta desse desenvolvimento. Além das misérias modernas, aflige-nos toda uma série de misérias herdadas, decorrentes da permanência vegetativa de modos de produção arcaicos e antiquados, com o seu séquito de relações sociais e políticas anacrônicas. Padecemos não apenas por causa dos vivos, mas também por causa dos mortos. Le mort saisit le vif! [O morto se apoderado vivo!]

Comparada com a inglesa, a estatística social da Alemanha e dos demais países ocidentais do continente europeu ocidental é miserável. Não obstante, ela levanta suficientemente o véu para deixar entrever, atrás dele, uma cabeça de Medusa. Ficaríamos horrorizados ante nossa própria situação se nossos governos e parlamentos, como na Inglaterra, formassem periodicamente comissões para investigar as condições econômicas; se a essas comissões fossem conferidas a mesma plenitude de poderes para investigar a verdade de que gozam na Inglaterra; se, para essa missão, fosse possível encontrar homens tão competentes, imparciais e inflexíveis como os inspetores de fábrica na Inglaterra, seus relatores médicos sobre public health (saúde pública), seus comissários de inquérito sobre a exploração de mulheres e crianças, sobre as condições habitacionais e nutricionais etc. Perseu necessitava de um elmo de névoa para perseguir os monstros. Nós puxamos o elmo de névoa sobre nossos olhos e ouvidos para poder negar a existência dos monstros.

Não podemos nos iludir sobre isso. Assim como a guerra de independência americana do século XVIII fez soar o alarme para a classe média europeia, a guerra civil americana do século XIX fez soar o alarme para a classe trabalhadora europeia. Na Inglaterra, o processo revolucionário é tangível. Quando atingir certo nível, haverá de repercutir no continente. Ali, há de assumir formas mais brutais ou mais humanas, conforme o grau de desenvolvimento da própria classe trabalhadora. Prescindindo de motivos mais elevados, os interesses mais particulares das atuais classes dominantes obrigam-nas à remoção de todos os obstáculos legalmente controláveis que travem o desenvolvimento da classe trabalhadora. É por isso que, neste volume, reservei um espaço tão amplo à história, ao conteúdo e aos resultados da legislação inglesa relativa às fábricas. Uma nação deve e pode aprender com as outras. Ainda que uma sociedade tenha descoberto a lei natural de seu desenvolvimento – e a finalidade última desta obra é desvelar a lei econômica do movimento da sociedade moderna –, ela não pode saltar suas fases naturais de desenvolvimento, nem suprimi-las por decreto. Mas pode, sim, abreviar e mitigar as dores do parto.
Para evitar possíveis erros de compreensão, ainda algumas palavras. De modo algum retrato com cores róseas as figuras do capitalista e do proprietário fundiário. Mas aqui só se trata de pessoas na medida em que elas constituem a personificação de categorias econômicas, as portadoras de determinadas relações e interesses de classes.

Meu ponto de vista, que apreende o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode menos do que qualquer outro responsabilizar o indivíduo por relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, por mais que, subjetivamente, ele possa se colocar acima delas.

No domínio da economia política, a livre investigação científica não só se defronta com o mesmo inimigo presente em todos os outros domínios, mas também a natureza peculiar do material com que ela lida convoca ao campo de batalha as paixões mais violentas, mesquinhas e execráveis do coração humano, as fúrias do interesse privado. A Alta Igreja da Inglaterra, por exemplo, perdoaria antes o ataque a 38 de seus 39 artigos de fé do que a 1/39 de suas rendas em dinheiro. Atualmente, o próprio ateísmo é uma culpa levis [pecado venial] se comparado com a crítica às relações tradicionais de propriedade. Nesse aspecto, contudo, não se pode deixar de reconhecer certo avanço. Remeto, por exemplo, ao Livro Azul publicado há poucas semanas: “Correspondence with her Majesty’s Missions Abroad, Regarding Industrial Questions and Trade Unions”. Os representantes da Coroa inglesa no exterior afirmam aqui, sem rodeios, que na Alemanha, na França, numa palavra, em todos os países civilizados do continente europeu, a transformação das relações vigentes entre o capital e o trabalho é tão perceptível e inevitável quanto na Inglaterra. Ao mesmo tempo, do outro lado do Atlântico, o sr. Wade, vice-presidente dos Estados Unidos da América do Norte, declarava em reuniões públicas: depois da abolição da escravidão, passa à ordem do dia a transformação das relações entre o capital e a propriedade da terra! São sinais dos tempos, que não se deixam encobrir por mantos de púrpura nem por sotainas negras. Eles não significam que amanhã hão de ocorrer milagres, mas revelam que nas próprias classes dominantes já aponta o pressentimento de que a sociedade atual não é um cristal inalterável, mas um organismo capaz de transformação e em constante processo de mudança.

O segundo volume deste escrito tratará do processo de circulação do capital (Livro II) e das configurações do processo global (Livro III); o terceiro (Livro IV), da história da teoria.

Todos os julgamentos fundados numa crítica científica serão bem-vindos. Diante dos preconceitos da assim chamada opinião pública, à qual nunca fiz concessões, tomo por divisa, como sempre, o lema do grande florentino: Segui il tuo corso, e lascia dir le genti! [Segue o teu curso e deixa a gentalha falar!]
Londres, 25 de julho de 1867