“Não lembro”, García Meza, o ditador boliviano que perdeu a memória

As novas gerações sabem pouco sobre o ditador boliviano García Meza (julho 1980 – agosto 1981). Talvez tenham escutado que foi o responsável pelo assassinato do Marcelo Quiroga[1] e dos dirigentes do Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR) massacrados em uma casa da Rua Harrington. Ou das negociatas de La Gaiba e o tráfico de cocaína.

Por Alfonso Gumucio

Garcia Meza - Divulgação

Inclusive para as pessoas do MAS que governam atualmente a Bolívia, García Meza é demasiado remoto. Eles não lutaram contra a ditadura de García Meza, não sofreram perseguição e exílio, só receberam a democracia em bandeja (e se aproveitaram muito bem dela).

Para a minha geração, em troca, García Meza e seu braço direito, Arce Gómez, foram os responsáveis, ainda antes do golpe que os levou ao poder no dia 17 de julho de 1980, do sequestro, tortura e assassinato de Luis Espinal, diretor do Semanário Aqui.

Das páginas do Semanário denunciávamos o que então nos parecia evidente: García Meza preparava um golpe de Estado, mas a presidenta Lidia Gueiler não o removia do seu cargo de Comandante em Chefe das Forças Armadas. Em 19 de abril de 1980, um mês depois do assassinato de Luis Espinal, publiquei no Seminário Aqui este breve texto que aludia com ironia aos planos golpistas:

“García tem uma mesa, uma mesa plana. É uma mesa de cozinha. García cozinha em sua mesa plana. Não deixa que a senhora sequer se aproxime da sua mesa, embora a senhora também tenha direito à cozinha. Mas a cozinha de García é secreta, por isso a senhora não deve se aproximar. À noite, enquanto a senhora dorme, García brinca sobre a mesa da cozinha. García gosta dos soldadinhos de chumbo. Alinha-os em pé e os leva à batalha atrás dos tanques. Fica bravo quando um soldado não obedece, o esmaga, o põe de castigo num canto da mesa. García reina sobre a mesa a cada noite, mas agora quer reinar de dia também; por isso, decidiu dizer à senhora que, por mais senhora que seja dessa cozinha, quem cozinha e manda ali é ele, de dia e de noite. García quer uma mesa plana, uma mesa uniforme, uma mesa sem asperezas, sem obstáculos para que seus soldados avancem. García quer ser o amo dessa mesa sobre a qual faz e desfaz, corta e sacrifica. A senhora… é melhor que finja estar dormindo: as calças quem veste é ele. A mesa de García, é claro, é quadrada e tem quatro patas”.

Três meses mais tarde, como estava cantado, o golpe militar e o assassinato de Marcelo Quiroga, Gualberto Vega, Carlos Flores, entre outros. El Diario publicou na primeira página: “A revolução de 17 de julho é do povo”. O Semanário Aqui foi um dos alvos dos golpistas, mas não puderam nos achar. Cada um na redação e na assembleia do Semanário procurou sua maneira de esquivar a mão dura da repressão. Arce Gómez, Ministro do Interior, declarava sem meias palavras que todos tínhamos que “andar com o testamento debaixo do braço”.

Depois de umas semanas de clandestinidade, decidi me asilar na Embaixada do México para não pôr em risco os amigos que tinham me acolhido em sua casa. Ximena Iturralde se arriscou a me levar da casa onde estava escondido em São Jorge até a residência da Embaixada em Obrajes. Chegamos a ser uma centena de asilados, dormíamos no chão, amontoados, e compartilhávamos as tarefas da cozinha, porque Dora, a cozinheira, não teria podido com tanta gente.

Quando em setembro a ditadura começou a outorgar salvo-condutos para que os asilados viajassem para o México, percebemos que essa medida não beneficiava alguns de nós. Soubemos de uma lista de seis asilados que, segundo Arce Gómez, iam “apodrecer” na embaixada, pois não lhes concederia “jamais” o salvo-conduto de saída. Nessa lista estava meu nome (junto a Cristina Trigo, Antonio Peredo, Luis López Altamirano, entre outros), o que me fez tomar a decisão de escapar pela fronteira peruana, mas essa é outra longa história.

No meu livro “La máscara del gorila” (1982), que foi premiado no México, incluí um capítulo em que comento a breve hagiografia que sobre García Meza publicou o servil Dr. F. Hugo Salamanca T., com o sugestivo título “El hombre nuevo”. Ainda conservo esse exemplar como uma raridade bibliográfica, de antologia. Salamanca faz um “esboço biográfico” de García Meza que faria Simon Bolívar empalidecer de inveja.

Com o retorno da Bolívia à democracia, García Meza foi julgado e condenado graças ao trabalho impecável e implacável de Juan del Granado. Durante o julgamento, a cada pergunta o acusado respondia: “Não sei, não me lembro…”

Fugido do país, foi capturado em 11 de março de 1994 em São Paulo e extraditado para a Bolívia depois de um ano de tediosos trâmites realizados por meu querido amigo Jaime Balcázar, então Embaixador da Bolívia no Brasil. Anos depois, em Brasília, Jaime me entregou um volumoso arquivo com as fotocópias desse processo: “Para o caso de você se animar a escrever algum dia”.
Pouco antes de morrer, García Meza “recuperou” a memória. Em uma carta de despedida salpica com ventilador uma dúzia de personagens políticos, os quais acusa de ser responsáveis pela sua ditadura. Ou seja, ele nunca fez nada de mal, foram os outros.

Notas

[1] Foi um político socialista, professor universitário e escritor. Após o golpe de Estado no país, em julho de 1980, foi levado por militares durante a invasão da Central Operária Boliviana (COB). Quiroga foi conduzido ao Estado Maior do Exército, onde desapareceu