O primeiro inverno

O outono ensolarado e de gelo faz um negócio com os corpos: ainda que haja tanto frio o calor do sol nos alegra os poros, como se se depositasse feito amante num hotel, deslizando sobre nossa pele

Por Paloma Franca Amorim

outono

Meu sonho desperto do amor só foi anulado na esquina da Humberto I com a Rodrigues Alves quando eu vi um homem chutando uma mulher que dormia profundamente sob o recorte de uma nesga de sol, quase geométrica, no espaço de uma garagem de calçada, das que iniciam a entrada das casas recuadas, antigas nesses ventres de arranha-céus e aeroportos que se tornaram as cidades depois das guerras mundiais. Tentei passar impune, ignorando a cena, porque em certa medida me pareceu – e ainda, sim, me parece – mais interessante ouvir meu coração batendo apaixonado a ressoar pelo estômago, pelas varizes, pelo pensamento. Mas não consegui superar momentaneamente esse meu gênero ancestral que insiste em dar importância aos afetos e eventos além de mim. Voltei sete passos e me aproximei do homem que continuava a tentar acordar a mulher com seus chutes levíssimos de nojo e engulho, porque havia um carro tentando estacionar na garagem, conduzido por um senhor muito velho e mal humorado.

O outono ensolarado e de gelo faz um negócio com os corpos: ainda que haja tanto frio o calor do sol nos alegra os poros, como se se depositasse feito amante num hotel, deslizando sobre nossa pele encapotada em casacos de lã maciça e cachecóis coloridos.

Não dessa vez.

Eu suava mas não mais de paixão, era de raiva.

Sinto raiva às vezes, não há de fazer bem ao meu coração, ainda mais com o excesso de álcool e cigarros ao qual tenho me dedicado nos últimos tempos, esses que pressupõem transformações políticas, acirramentos ideológicos, românticos. Sinto ira tenebrosa do clima paulistano desde que vim pra cá há doze anos. Eu era uma adolescente e tudo se revelava para mim como uma oportunidade ilimitada de afazeres e abrigos. Eu tinha tantas expectativas que jamais poderiam caber naqueles meus 18 anos, recém ajeitados num corpo meio disperso e estabanado, típico das vidas que se desdobram em si mesmas no aprendizado de um porvir que nunca chega.

Mas senti esses temores terríveis quando chegou o primeiro inverno.

Eu, amazônida da gema – porque não são só os cariocas – habituada ao calor das três da tarde enredado por um bom tacacá e por um bom ventilador no dois, repousava nas noites paulistanas, no conforto de meu lar, usando as calças jeans batidas das horas da universidade, porque não suportava a temperatura e achava por força das pernadas cotidianas que aquela era a melhor vestimenta para cobrir-me no sono. Antes de me entregar às profundezas, no entanto, pensava nas pessoas que viviam sob os viadutos, existências essas que não conhecera antes porque a pobreza em Belém do Pará é diferente, tem tantas e tantas tristezas mas o tremor do frio calcinante não se faz uma delas. Pensava em minha cama, sob edredons encorpados, que existiam pessoas quase congeladas pela força impetuosa do inverno e pela crueldade das autoridade locais.

Essas coisas da vida dos outros quem me ensinou foi minha mãe que se dizia da espécie dos gentistas por amar as gentes, as pessoas, os seres viventes, com o poder oblíquo de sua alma e de seus braços que foram tragados por aquela madrugada triste em que ela nos deixou.
Voltei à mulher dormindo, como se respirasse minha mãe sobre meus ombros aconselhando-me a respeito de um destino que eu deveria seguir para honrar a nossa linhagem.

Me agachei e pedi com alguma serenidade que a moça acordasse, como fazia a Darcy todos os dias às seis da manhã para que eu não perdesse a primeira aula.

As pessoas em volta riram de mim. Aos poucos a mulher abriu os olhos, pediu desculpas por estar na calçada, pediu algo doce para curar a embriaguez. Acompanhei-a até a padaria e lhe paguei sem nove horas um café. Antes disso, no entanto, com a doçura de alguém que não tem filhos mas acorda os filhos com carinho, mandei o rapaz e o velho e todos em volta à merda.

Aí minha mãe me olhou daquele jeitinho dela, achou graça e eu, em resposta, também achei.