La pelota no se mancha – Por Guadalupe Carniel 

O título do texto foi dito por Maradona na sua despedida em La Bombonera, em 1997. Ele falou que “el potrero y la pelota no se manchan”, que queria dizer que seus problemas pessoais não mudavam a história que ele fez em campo. Como questionar o que D10S diz? Isso é até verdade. Mas há exceções, como no caso da partida Israel e Argentina.

Por Guadalupe Carniel*

messi latuff - Latuff

Ontem a AFA anunciou que o amistoso que seria realizado contra Israel foi cancelado por motivos de segurança. Ainda não há comunicado oficial nas redes sociais.

Não só os argentinos, mas o mundo vibrou com essa decisão.  Os jornais falavam “finalmente cancelado”, as pessoas vibravam e postaram em suas redes sociais. O problema principal era o local da partida: antes seria no estádio Sami Ofer, em Haifa, posteriormente mudado para o estádio Tedy Kollek, em Jerusalém, devido à pressão do governo de Israel, em carta aberta, assinada pela ministra Miri Regev, em que ainda citam que o local é ideal para o encontro. “Não pode ser que o time argentino venha ao país e isso não seja feito em Jerusalém. Afinal, Messi vem rezar no Muro das Lamentações”, referindo-se à quando, em 2013, junto com Neymar o jogador visitou o espaço e chegou a usar uma quipá.  
 
Para entender, a cidade de Haifa é portuária, fica a oeste e é considerada a cidade mais pacífica da região, devido à grande tolerância religiosa. Já Jerusalém (berço das três religiões monoteístas mais praticadas no mundo, cristianismo e islamismo) é uma cidade que pertence à Palestina, devido a tratados internacionais, mas foi invadida e é ocupada por Israel desde 1967.  
 
Obviamente, essa atitude foi vista pela Federação Palestina de Futebol como uma forma de endossar e apoiar a ocupação da Jerusalém Oriental e a rechaçou. Em uma carta, o presidente da federação, Jibril Rajoub, salientou que esse jogo er apenas um instrumento político sob a desculpa de comemorar os 70 anos do Estado de Israel “em um estádio construído sobre uma das 418 vilas palestinas destruídas nestas sete décadas”. 
Como se não bastasse, neste ano, países como Guatemala, Paraguai e EUA transferiram suas embaixadas para Jerusalém, quebrando assim o acordo internacional de não reconhecer a soberania da cidade até que não se chegue a um acordo de paz na região. Por falar em latino-americanos, Rajoub relembrou sobre como futebol e política tem uma relação bem próxima na região.  “A Argentina e tantos outros países latino americanos sabem muito bem como o futebol foi usado em suas respectivas ditaduras militares para encobrir as graves e sistemáticas violações aos direitos humanos. Esperávamos que os aprendizados do passado, assim como as regulamentações da FIFA, fossem suficientes para que este tipo de coisa não se repetisse”.
 
No dia 25 de maio, o Comitê Argentino de Solidariedade com o Povo Palestino reuniu cerca de 50 pessoas e fez um protesto na frente da AFA contra a partida e entrega de uma carta de repúdio ao presidente, Claudio Tapia em que cita-se que “não permita que a Albiceleste seja manchada”. O movimento internacional Boicote, Desintervenções e Sanções (BDS) mantém uma campanha chamada “Argentina no te vayas” para que o amistoso seja cancelado, contando com cerca de duas mil assinaturas até o momento. 
 
Segundo dados da ONU, 76 palestinos morreram (sendo onze crianças) somente no último mês, sendo o culpado direto as forças israelenses, principalmente na fronteira de Gaza. Contabiliza-se cerca de dois mil feridos, entre eles, Mohamed Khalil, um jogador de futebol palestino que sofreu um tiro em um dos joelhos, custando sua carreira esportiva.  Para Pablo Marzano, um dos membros do Comitê, a partida poderia ser evitada e considera que “com isso a Argentina tende a compactuar com as políticas sionistas de extermínio e genocídio ante o povo palestino”. 
 
Além de tudo, a Palestina tem uma grande relação com a Argentina e isso poderia entrar em colapso, graças a uma partida, “a seleção argentina tem milhares de fãs palestinos e no resto do mundo árabe. Seria uma pena que essa relação histórica se perdesse pela conivência da AFA de ser instrumento de Israel para encobrir violações ao direito internacional e aos direitos humanos”. Há cerca de três dias, houveram protestos novamente, mas, desta vez em Barcelona, com camisetas manchadas de sangue e uma carta entregue escrita por crianças palestinas. Em um dos trechos da carta: "Estimado Lionel Messi: Você é uma figura lendária do futebol com a qual todos sonhamos em ser iguais. Somos filhos de refugiados palestinos dos campos de refugiados de Qalandia, al Amari, Yalazón e Aida. Nossas famílias são originárias de Al Malha (povoado destruído para a construção do estádio). Disseram-nos que você vem jogar com os seus amigos em Al Malha, num estádio construído sobre a nossa aldeia. É certo que Messi, o herói, venha a jogar em um estádio construído sobre os túmulos dos nossos antepassados? Nós, em nome de nossos amigos, oramos a Deus para que atenda nosso desejo de que Messi não parta nossos corações."

Os jogadores optaram por ir de acordo com a decisão de Messi. Com isso a partida foi cancelada e ontem foi anunciado o cancelamento. Após o anúncio, o primeiro ministro israelense, Benjamin Netanyahu pediu que Maurício Macri (o presidente argentino) intervisse na realização do jogo. Higuaín disse que esta foi a melhor decisão. 
 

Mas nem todos os futebolistas argentinos se mostraram contrários à decisão. Matías Martin, um jogador que vive há quatro anos em Israel e que joga no Hapoel Afula, disse em entrevista ao periódico Olé que ‘’Israel não mata ninguém, a partida poderia ser jogada sem problema nenhum. As entradas estavam esgotadas e tinha muita expectativa para ver a Messi”.
 
Dizem que futebol, política e religião não se discute. Mas, principalmente em época de Copa do Mundo, é quando de fato lembramos de algo: que aqueles onze jogadores em campo, com aquelas onze camisas não representam apenas o futebol; eles são uma Nação aos olhos do mundo, não podemos esquecer que o evento ainda é o mais visto do globo. Sim, quando um jogador concorda em jogar em um local sagrado (e claro aí envolve-se o dinheiro) ele está representando um país e, junto está fazendo o papel da diplomacia. Se ele aceita jogar em Jerusalém contra Israel e não se pronuncia, ele está apenas sendo conivente com toda a situação. 
Jogo envolve sim política, cultura, religião…eu sei que o discurso hoje em dia se tornou vazio, mas sim, é mais do que um jogo. Na realidade, o discurso se esvaziou porque tornamos tudo simplesmente um jogo, começou de dentro pra fora. E nós engolimos tudo isso. A começar por querer separar o esporte dos demais assuntos, como se vivêssemos numa bolha. Quando, alguém faz algo além de jogar, muitos suspiram e falam “é mais do que um jogo”, quando não passam de banalidades, fatos que não mudam em absoluto a realidade de quem vive de e por futebol. Mais do que um jogo é se posicionar, é apontar o dedo. 
 
Passou da hora de jogadores assumirem sua responsabilidade. As agendas criadas por federações e Estados devem sim ser questionadas. Obviamente, a decisão não foi tomada por questão de segurança, mas para evitar atritos e desgaste da imagem de Messi. Sim, o brilhante mundo das aparências. E mais: os outros jogadores da seleção não se posicionaram e delegaram tudo a um só? O esporte é coletivo, oras, as decisões também. E por que até agora a AFA não divulgou sequer uma nota e não presta satisfações? Sem contar a opinião infeliz de um jogador que atua em Israel e que simplesmente ignora o que acontece. Como diria Nelson Rodrigues, o pior cego é aquele que só vê a bola. 
Eu odeio dizer isso, mas, sim, às vezes "la pelota se mancha" sim, Don Diego.Se Messi e cia decidissem jogar em celebração aos 70 anos de Israel, com uma “inocente partida de futebol”, que é muito mais do que isso: também é um evento/instrumento político. Como bem disse o embaixador palestina na Argentina, Husni Abdel Wahed: “É como se nós celebrássemos a ocupação das Malvinas, uma aberração, uma falta de respeito e uma agressão ao povo argentino”.