Na Agência de Cinema, ministro da Cultura aperfeiçoa 'aparelhamento'

 Sérgio Sá Leitão cria um decreto que esvazia a Ancine, racha o ministério e provoca a saída do secretário do Audiovisual.

sá leitão

 Sem qualquer lastro democrático, o governo Temer assinala que ainda pode contribuir mais para aprofundar o conceito de política subterrânea. Nos últimos dias, o principal subsídio tem vindo do seu Ministério da Cultura (MinC), que consegue ir além da irrelevância: afunda o que já era agonizante.

Ao manobrar para garantir sobrevida de influência na área audiovisual do pós-golpe, o ministro da Cultura de Temer, Sérgio Sá Leitão, acabou criando uma crise dentro da crise – que culminou, na segunda-feira 25, no pedido irrevogável de demissão do secretário do Audiovisual, João Batista da Silva, um funcionário de carreira que estava desde 1995 no ministério.

A trapalhada do ministro começou quando ele editou, no dia 19, um decreto que pretendia, em teoria, reorganizar a estrutura administrativa do MinC. O Decreto nº 9.411/2018 criou a Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual – uma ironia, já que a primeira medida da gestão de Temer foi justamente esvaziar a antiga Diretoria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual do ministério, que tinha mais especialistas e funcionários do que a estrutura que Sá Leitão criou agora.

Mas foi nas entrelinhas do decreto que a confusão começou. O primeiro a estrilar foi o diretor-presidente da Agência Nacional do Cinema, Christian de Castro, ex-patrão e ex-sócio de Sérgio Sá Leitão e colaborador estreito de suas pretensões empresariais. Castro se disse surpreso com o texto publicado no Diário Oficial pelo chefe, no qual este estabelece novas atribuições para a Secretaria do Audiovisual (SAv) conflitantes com as missões legais da agência (instituição à direção da qual foi conduzido justamente pelo ministro).

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O que era exclusivo da Ancine, “estabelecer critérios para a aplicação de recursos de fomento e financiamento à indústria cinematográfica e videofonográfica nacional”, por conta da Medida Provisória que a criou agora está com a Secretaria do Audiovisual, entre outras coisas. “Eu tive conhecimento do teor desse decreto pelo Diário Oficial e em nenhum momento fomos consultados previamente por quem quer que seja”, diz o diretor-presidente.

A equipe atual de técnicos da Secretaria do Audiovisual foi informada de que muitos dos servidores serão dispensados para abrigar novos funcionários, boa parte deles da esfera de influência política. A “necessidade de ajuste da equipe” foi comunicada ao secretário do Audiovisual, que se recusou a abrigar essa tropa de choque e se afastou.

Com uma postura imperial à frente do combalido (e sem qualquer respaldo público) Ministério da Cultura, Sá Leitão aperfeiçoa o que, em governos de outro espectro político, seria chamado de “aparelhamento”. Acaba de emplacar Mariana Ribas, uma amiga e ex-colaboradora na RioFilme, empresa de cinema estatal do Rio de Janeiro, como nova diretora da Agência Nacional do Cinema. Ele já detém a maioria na composição de quatro membros da agência, o que lhe garante influência ali por um bom tempo.

Mas, sendo assim, por que ele resolveu sequestrar atribuições da Ancine, que já está sob seu controle total? A explicação, segundo observadores, é a acomodação política em cargos novos e a manobra para manter sob sua batuta pessoal todas as decisões até a saída do governo, em dezembro. Depois, passa a puxar as cordinhas de fora. O que não contava é que seu secretário do Audiovisual, João Batista da Silva, se recusaria a participar do teatro ruim e pediria demissão.

“Eu vejo o decreto do governo como um ato inócuo e de total equívoco, num momento em que o atual governo já deveria estar organizando a transição, ou seja, limpando as gavetas”, disse João Batista da Silva. Para o secretário demissionário, o governo não tem mais tempo para “inventar a roda” e a atual estrutura da SAv é ínfima perto das atribuições que ganhou (embora ele concorde com parte do texto do decreto).

Há um problema de confiança entre os funcionários da cultura do golpe. Fontes do ministério informaram a CartaCapital que o responsável pela urdidura do texto é homem de confiança de Sá Leitão, estafeta que ele usa para controlar seu próprio grupo de seguidores. Chama-se Marcos Tavolari e está lotado no Rio de Janeiro, embora tenha um cargo (DAS 101.5) que o obrigue a trabalhar em Brasília, o que configura uma ilegalidade. Sá Leitão encomendou o texto a Tavolari (que quer converter em secretário) sem submetê-lo a Christian Castro, o que gerou tal desconforto que até o grupo de WhatsApp do qual participavam se dissolveu com as deserções.

A Assessoria de Comunicação do Ministério da Cultura respondeu aos questionamentos da reportagem. Segundo o MinC, “todas as áreas afetadas foram devidamente consultadas ao longo do processo de elaboração do decreto” que modificou a área do audiovisual e “não há conflito de atribuições”, mas uma adequação ao “modelo de governança da política de audiovisual previsto na MP 2228/01 e outros textos legais”.

O MinC afirmou que “é falsa a informação de que o decreto foi elaborado pelo servidor Marcos Tavolari” e que não há ilegalidade no fato de o assessor trabalhar no Rio de Janeiro. “O MinC tem um Escritório Regional no Rio de Janeiro, onde há uma unidade de apoio ao Gabinete do Ministro.” A nota afirma que o grupo de WhatsApp segue ativo, mas não é categórica sobre a permanência ou não de Christian Castro.

Sá Leitão chegou a ser “exonerado” recentemente pela Empresa Brasil de Comunicações (EBC), porta-voz de recados do governo. No dia 12, após ele criticar publicamente uma medida provisória de Michel Temer, a EBC divulgou reportagem com o título “Ministro da Cultura deverá pedir demissão”.

O motivo da contenda fora a Medida Provisória nº 841 (MP nº 841/2018), pela qual Temer criou o Fundo Nacional de Segurança Pública. Entretanto, a fonte de recursos encontrada, a receita advinda das loterias federais, veio com um efeito colateral nocivo para a cultura nacional: compromete a manutenção do financiamento do sistema desportivo brasileiro, além de reduzir drasticamente a participação dessas loterias na composição do Fundo Nacional de Cultura (FNC), do MinC.

Segundo exame preliminar, o porcentual do FNC, que era de 3%, poderá cair a partir de 2019 para 1% e 0,5%, conforme o caso. Ao longo de anos de limitação financeira e incompreensão de gestores (de todo o leque da política, diga-se), mais de 1,5 bilhão de reais das loterias deixaram de ser repassado a esse fundo. Apesar desse quadro de desidratação de recursos – o MinC já teve mais de 40% de recursos contingenciados e, para 2019, deve perder mais 30%, segundo a proposta atual do Ministério do Planejamento. Sá Leitão mostrou mais amor pelo emprego do que pela dissidência.

“O ministro não tem a menor intenção de entregar o cargo”, rebateu a assessoria de comunicação de Sá Leitão. Horas depois da manchete da EBC, ele atacou com violência no Twitter a agência pública de notícias do governo do qual faz parte. “Agência Brasil = fake news com o dinheiro público. Até quando o Brasil vai suportar mais esse entulho autoritário”, escreveu (digitou o texto assim mesmo, sem a interrogação).

Curioso é que, nas crises mais agudas, Sá Leitão está sempre adequadamente longe da repercussão. Quando houve o problema com a Medida Provisória de Temer, ele estava em Annecy, na França, para um festival de cinema de animação. No momento em que seu secretário do Audiovisual saiu, estava em Washington. Em 12 meses à frente do ministério, Sérgio Sá Leitão viajou oito vezes para o exterior.

Chegou a ficar 13 dias na Europa. É o ministro do golpe que mais fez viagens internacionais, mais até que o ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes. Em sua defesa disse que ajudou o País a fechar mais de 100 milhões de dólares em negócios. Mas a assessoria não respondeu ao pedido da reportagem de enviar uma lista desses negócios fechados.