Capitalismo não entrega o que promete e fascismo desliza sorrateiro

“Em sua configuração atual, o capitalismo escancara a incapacidade de entregar o que promete aos cidadãos”, diz o economista e professor da Unicamp, Luiz Gonzaga Belluzzo, em artigo publicado no jornal Valor Econômico. Para ele, “normas sociais da concorrência utilitarista” guiam o sujeito pós-moderno e, introjetadas, contribuem para a sua despolitização. Nesse ambiente, “o pequeno fascismo desliza sorrateiro para a alma de cada indivíduo”.

Capitalismo e solidão - Andrzej Krauze

No texto – que se chama “Assim falou Bolsonaro”, numa referência ao célebre “Assim Falou Zaratustra”, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche -, Belluzzo destaca que a busca pela diferenciação do consumo e dos estilos de vida é a marca registrada da concorrência de massas.

“Os impulsos para acompanhar os hábitos, gostos e gozos dos bem aquinhoados se esboroam nas angústias da desigualdade. A maioria não consegue realizar seus desígnios, atolada no pântano da sociedade de massas”, escreve.

De acordo com ele, os ganhos propiciados pela valorização da riqueza financeira “sustentam o consumo dos ricos e, simultaneamente, aprisionam as vítimas da crescente desigualdade nos circuitos do crédito”. E, na tentativa de acompanhar os novos padrões de vida, boa parte da população compromete partes cada vez maiores de sua renda “nas encrencas do endividamento”.

Belluzzo menciona estudo patrocinado pelas Universidades de Indiana e da Califórnia que registra o crescimento exponencial do número de aposentados que vão à falência pessoal, por causa da redução no valor das pensões, de despesas médicas sem cobertura pública, do endividamento elevado e de credores implacáveis.

“No mundo em que mandam os mercados da riqueza, os vencedores e perdedores se dividem em duas categorias sociais: na cúspide, os detentores de títulos e direitos sobre a renda e a riqueza, gozam de "tempo livre" e do "consumo de luxo"; na base, os dependentes crônicos da obsessão consumista e do endividamento, permanentemente ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência”, afirma.

Na sua avaliação, a celebração do sucesso colide com a exclusão social, e o desemprego estrutural, com a igualdade de oportunidades. E essa pressão competitivo-aquisitiva desencadeia transtornos psíquicos no que ele chama de “indivíduos-utilitaristas consumidores”.

“Os trabalhos de destruição da subjetividade iluminista são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. Nesse ambiente competitivo, algozes e vítimas das promessas irrealizadas de felicidade e segurança assestam seus ressentimentos contra os "inimigos" imaginários, produtores do seu desencanto”, aponta.

Nesse sentido, os inimigos são sempre os outros: “os imigrantes, os pobres preguiçosos que preferem o Bolsa Família e recusam a vara de pescar, comunistas imaginários etc”. Para Belluzzo, o indivíduo iluminista de Adam Smith, aquele consciente de sua liberdade e empenhado na preservação de sua autonomia, “foi substituído por um indivíduo depressivo em seus insucessos e frustrações, sempre preocupado em retirar de si, com doses maciças de Prozac, a essência de todo o conflito”.

O economista chama a atenção para o fato de que, na atualidade, se esfacelaram os sentimentos de pertinência à mesma comunidade de destino, o que suscita processos subjetivos de diferenciação e (des)identificação em relação aos "outros". “Essa recusa do outro vem assumindo cada vez mais as feições de um individualismo tosco, agressivo e antirrepublicano”, coloca.

O artigo cita ainda que esta "psicologização" utilitarista da existência tomou a sociedade e contribuiu para o avanço da despolitização, “filha dileta do que Michel Foucault e Gilles Deleuze chamaram de "pequeno fascismo da vida cotidiana", praticado e celebrado pelo indivíduo ressentido, ao mesmo tempo protagonista e vítima de um processo social que não compreende”.

E assim Belluzzo conclui seu texto: “O pequeno fascismo desliza sorrateiro para a alma de cada indivíduo, sem ser percebido, ainda que continue a simular a defesa dos sacrossantos princípios da família, dos costumes e da religião. Assim falou Bolsonaro”.