“Quando Aretha Franklin canta, é a história americana que jorra”

Muito próxima de Martin Luther King e de outras figuras da luta pelos direitos civis dos negros, Aretha Franklin viu a sua versão de "Respect" tornar-se, em 1967, um hino desse movimento. Quase meio século depois, o primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos, Barack Obama, ouviu-a cantar "Natural woman" e não conseguiu conter as lágrimas.

Por Luís Miguel Queirós

aretha franklin - AFP

Filha do pastor baptista C. L. Franklin (1915-1984), figura de relevo do movimento de luta contra a discriminação dos negros americanos nos anos 50 e 60, Aretha Franklin conviveu desde muito nova com Martin Luther King, que era amigo da família, e chegou mesmo a acompanhá-lo em digressões pelo país, cantando em serviços religiosos e comícios. “Tinha acabado de deixar a escola, via como era importante o que o Dr. King estava tentando fazer, e pedi ao meu pai para viajar com ele”, lembrou a cantora em 2014, numa entrevista conduzida pelo reverendo Al Sharpton.

A cantora tinha então 15 anos, a idade com que abandonou os estudos, mas já era mãe de um filho e lançara no ano anterior o seu primeiro álbum, Songs of Faith, gravado na igreja do pai, a New Bethel Baptist Church em Detroit, no Michigan. Alguns anos depois, em junho de 1963, os reverendos Franklin e King desfilariam juntos na marcha pelos direitos civis que o primeiro organizou em Detroit, e que serviu ao segundo como balão de ensaio para testar o célebre discurso “I have a dream”, com o qual iria depois galvanizar, no final de agosto, os 250 mil manifestantes que participaram na marcha em Washington.

O prestígio de C. L. Franklin – diziam que tinha uma voz que valia milhões, e o reverendo empregava-a proveitosamente nos seus sermões, tão apreciados que começaram a ser difundidos na rádio e gravados em disco – atraiu também à sua casa alguns dos cantores mais envolvidos na luta contra a segregação racial, como Harry Belafonte, Mahalia Jackson ou Sam Cooke, com os quais Aretha conviveu desde muito nova.

“A música é a alma do movimento”, escreveu o próprio Luther King. E tendo em conta o seu contexto familiar e o seu precoce e extraordinário talento como cantora, Aretha Franklin estava destinada a tornar-se, também ela, um ícone (apetece acrescentar “natural”) da luta pelos direitos civis. Mas se indiscutivelmente o foi, acabou por devê-lo menos ao seu efetivo ativismo juvenil do que ao fato de a sua versão de “Respect”, um tema de Otis Redding que gravou em 1967, ter se transformado do dia para a noite não apenas num hino feminista, mas também num protesto contra a discriminação racial.

Uma circunstância que a cantora garante não ter pretendido ou antecipado, mas que resulta quer das cirúrgicas alterações que ela e a sua irmã Carolyn introduziram na letra original, quer da intensidade da sua interpretação, que transformaram mais uma canção sobre o homem que trabalha duro para trazer dinheiro para casa, e apenas exige em troca que a mulher o respeite, numa espécie de grito de guerra que captava exemplarmente o sentimento de urgência de um tempo de mudança.

“Respect” foi lançado em 1967, num país onde aconteciam as manifestações contra a guerra do Vietnã, dezenas de milhares de hippies convergiam para São Francisco, o epicentro do tsunami psicodélico, as lutas pela igualdade de gênero davam os primeiros passos e os motins raciais incendiavam as cidades americanas: os mais violentos ocorreram precisamente na Detroit de Aretha Franklin, onde no final de Julho desse ano morreram 43 pessoas e centenas ficaram feridas.

“A change is gonna come”, previra Sam Cooke em 1963, na canção que escreveu após ter sido impedido de entrar num hotel só para brancos. “Times they are a changin”, confirmaria Bob Dylan no ano seguinte. Mas em 1967 ainda havia muito por mudar: “I Never Loved a Man the Way I Love You”, o álbum que tinha “Respect” como tema de abertura, fora já lançado há alguns meses quando o Supremo Tribunal dos Estados Unidos aprovou a histórica decisão de considerar inconstitucional toda a legislação estadual que proibisse os casamentos inter-raciais.

"O Dr. King mudou a minha vida"

“I Never Loved a Man the Way I Love You”, primeiro álbum da cantora na Atlantic Records, teve um extraordinário sucesso – em maio, o single “Respect” já estava no topo dos mais vendidos – e consagrou Aretha Franklin como uma das grandes cantoras do seu tempo. Quando esta regressa a Detroit, em 16 de fevereiro de 1968, para atuar no Cobo Hall, já é uma estrela mundial. O concerto, visto por mais de 12 mil pessoas, é de tal ordem que o presidente da Câmara não se contém e institui logo ali a data de 16 de fevereiro como o “dia de Aretha Franklin”. Mas a subida ao palco que causou maior impacto não foi a sua, antes a de Martin Luther King, que voou propositadamente para Detroit para entregar à cantora um prêmio em reconhecimento do seu contributo para a definição da identidade afro-americana.

O líder do movimento dos direitos civis é assassinado dois meses mais tarde, em abril de 1968, e é Aretha Franklin quem canta no seu funeral o hino “Take my hand, precious Lord”. “Era um dos seus favoritos, e pedia-me sempre que o cantasse quando viajávamos juntos”, justificou mais tarde.

Em agosto desse ano, já depois do assassinato de Robert Kennedy, em junho, Aretha Franklin cantou o hino dos Estados Unidos na convenção nacional do Partido Democrata que apontaria como candidato Hubert Humphrey, depois derrotado pelo republicano Richard Nixon. Militante do Partido Democrata, a cantora teve também na gala da tomada de posse de Jimmy Carter, em 1977, e interpretou “God bless America”.

Ao longo da vida, Aretha Franklin apoiou de muitas formas, incluindo financeiramente, a luta contra a discriminação dos afro-americanos nos Estados Unidos, mas nunca foi, como ela própria destacou repetidamente, uma ativista no sentido mais estrito. “Não estava na linha de frente”, diz numa entrevista à CNN em 2015. O que não impede que tenha sido considerável, e desde cedo reconhecido, o papel que a sua música e a sua personalidade desempenharam na luta contra o racismo e o sexismo. E se a cantora sempre procurou relativizar esse impacto é talvez por estar mais segura do movimento inverso: “Por causa do Dr. King e do movimento dos direitos civis, a minha vida mudou para sempre”, afirmou numa entrevista de 2014.

Em 2005, George W. Bush atribui-lhe a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta condecoração civil do país. Nesse mesmo ano ela fez questão de cantar no funeral de Rosa Parks, veterana da luta contra a segregação racial, a mulher negra do Alabama que, 50 anos antes, em 1955, tivera a coragem de recusar-se a ceder o seu lugar a um branco num ônibus coletivo.

Em 2009, Aretha Franklin cantou “My country ‘tis of thee” na posse do primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos, Barack Obama, atuação que depois culminou na já referida conversa com Al Sharpton: “Foi espantoso ver aquelas vagas de gente até onde a vista alcançava, sabendo o que significava aquele momento histórico.”

Obama voltou a ouvi-la ao vivo em dezembro de 2015, e dessa vez não conseguiu conter as lágrimas. O presidente assistia à gala anual de atribuição dos prémios de carreira do Kennedy Center, em Washington, e um dos artistas homenageados era a cantora e compositora Carole King, co-autora de (You make me feel like a) “Natural woman”. Sem que King ou os restantes convidados soubessem, pediram a Aretha Franklin que subisse ao palco para interpretar essa canção, que ela gravou e lançou em 1967 e que se tornaria um dos seus temas mais conhecidos.

Dando provas de uma vitalidade prodigiosa, e que tornou ainda mais pungente a rapidez com que a sua saúde depois declinou, a cantora de 73 anos realmente colocou a casa abaixo. Começou a cantar sentada ao piano, mas depois levantou-se, e quando se libertou do casaco de peles e o atirou para o chão, preparando-se para chegar às notas mais altas, todos se levantaram espontaneamente das cadeiras, e a aplaudiram de pé. Carole King abria a boca espantada, Obama limpava as lágrimas.

Não foi a última vez que Aretha Franklin subiu a um palco. Em 2016 foi à Casa Branca despedir-se de Barack e Michelle Obama, e antes de começar a cantar resumiu o que tinha a dizer numa frase breve: “I hate to see you go”. A sua derradeira atuação pública, em novembro de 2017, dedicou-a à luta contra a Aids, cantando em Nova Iorque numa gala da Elton John AIDS Foundation.

Mas é a interpretação de “Natural woman” no Kennedy Center que merece ficar para a história como o seu verdadeiro adeus. Por ser uma atuação espantosa, mas também porque na intensidade das emoções que provocou se adivinha o inextricável efeito conjugado de tudo o que Aretha Franklin foi: talvez a maior cantora de todos os tempos (a Rolling Stone acha que sim), mas também a mulher negra independente, destemida, talentosa, que exigia e impunha respeito, como na canção, e que se tornou para muitos o símbolo vivo das mudanças sociais e culturais que a América atravessou nos anos 60.

Obama disse-o melhor quando tentou explicar a comoção que sentiu no seu camarote do Kennedy Center. “Ninguém encarna tão completamente a ligação entre os espirituais afro-americanos, os blues, o R&B e o rock'n'roll, o modo como a adversidade e o sofrimento são transformados em algo cheio de beleza e vitalidade e esperança. Quando Aretha Franklin canta, é a história americana que jorra."

Assista à apresentação de Aretha que fez Obama chorar: