Publicado 05/09/2018 18:52
A destruição do Museu Nacional não foi um acidente, mas um crime doloso: pensado, calculado, planejado, executado com precisão. É o holocausto cobrado pelo neoliberalismo.
Tragédia anunciada como outras que estão a caminho (e a próxima vítima pode ser o Arquivo Nacional), resultou, fundamentalmente, da política conservadora, regressiva, dita de austeridade, que, sem apoio na soberania popular, impôs ao País o corte dos gastos públicos, medida estúpida que impôs à Universidade brasileira, ao ensino e à pesquisa, à tecnologia e à inovação, à cultura e à educação de um modo geral, a mais cruel das dietas orçamentárias de que se tem notícia, determinando a suspensão de projetos de ensino e pesquisa, o cancelamento arbitrário de investimentos em instalações e equipamentos desprovidos de manutenção e condenados à obsolescência.
Esse incêndio é a materialização da Emenda Constitucional 95, uma negociação entre um presidente ilegítimo e um Congresso carente de legitimidade que, não obstante, determina o congelamento das despesas públicas por 20 anos.
Essa política, em nome de ‘ajustes fiscais’, corta projetos de pesquisa em áreas críticas para a vida nacional como saúde e biotecnologia, e bolsas de estudo, no Brasil e no exterior, ameaçando de colapso os programas de formação de nossos cientistas, professores e pesquisadores.
Em nome e a serviço dessa emenda, a súcia que nos governa trava o desenvolvimento nacional. Enquanto em todo o mundo a ciência e a aplicação tecnológica avançam dominando a produção e estabelecendo novos padrões de vida social, o Brasil, por força dessa política, opta pelo atraso.
Amanhã não haverá mais como compensar o tempo perdido.
Nem o ainda presidente, nem o ex-ministro Meireles (representante da banca internacional no governo e idealizador da emenda), nem ninguém, ignora as consequências dessa política. Ao contrário, prelibaram seus efeitos, e podem comemorar a marcha a ré que estamos dando, trocando progresso por atraso, avanço por recuo, riqueza por pobreza.
Este é, aliás, o ponto comum das políticas dependentistas das direitas antinacionais, primas do fascismo que, com sua ajuda, nos bate à porta. O discurso protofascista de ódio à cidadania, à cultura e à inteligência é bastante claro e, se assusta o brasileiro médio, faz o encanto da grande burguesia e do mercado.
Deu no que deu.
Quando assumi o comando do Ministério da Ciência e Tecnologia, em 2003, no primeiro governo Lula, encontramos na mais critica das situações o acervo científico, de particular o patrimônio documental, e nessa contingência o CNPq, dirigido por Erney Camargo, emérito pesquisado, organizou uma comissão, presidida pelo seu vice-presidente, professor Manuel Domingos Neto que, além de levantar o quadro crítico da preservação do patrimônio científico, conseguiu salvar as Bibliotecas do Instituto Artur Ramos e da Faculdade de Medicina da Bahia, a mais antiga do país, e o precioso acervo do DNOCS, em Fortaleza.
Dessa experiência resultou o primeiro Edital do CNPq voltado para custear a preservação de acervos, que, do contrário, teriam o mesmo destino do acervo do Museu Nacional. Enfrentávamos então a ressaca do governo FHC, que esvaziara a Universidade brasileira e, insaciável, reduzira sensivelmente as verbas do programa espacial, exatamente às vésperas do seu terceiro ensaio de lançamento (frustrado) do VLS, sigla de Veículo (foguete) Lançador de Satélites (um projeto de muitos nos da Aeronáutica), hoje abandonado.
A dieta de recursos deu no que deu, a saber, no desastre que destruiu foguete e plataforma de lançamento e ceifou a vida de 21 cientistas brasileiros. Presentemente, o governo que ainda ai está, negocia a cessão de nossa base de lançamentos de Alcântara (CLA) com os EUA, que dela não precisam, mas, tendo-a, nos impedem de tê-la.
Na contramão de seu antecessor, entendendo essa área como um dos motores insubstituíveis do crescimento nacional, Lula impediu o contingenciamento dos recursos destinados à Ciência e Tecnologia.
O desapreço de nossa classe dominante pelas coisas da cultura, o tratamento conferido à educação, à memória nacional, vêm de longe, e são responsáveis pelo quadro de hoje, caracterizado pelo descaso com as políticas de preservação do patrimônio histórico e científico.
Esse desapreço (que a política de austeridade neoliberal leva ao paroxismo) se reflete na política orçamentária da União. Nos últimos anos verifica-se a drástica redução dos recursos destinados à Ciência e à Tecnologia.
Sirva a consumação da tragédia como um grito de advertência, dizendo à sociedade brasileira que, se não mudarmos essa política, se não proclamarmos um não bem forte ao desmonte do Estado brasileiro, muitas outras tragédias ocorrerão e mais profundo será o gap tecnológico nos separando das sociedades industrializadas.
Segundo a Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados, os valores recebidos pelo Museu Nacional caíram de 979 milhões de reais em 2013 para 98 milhões de reais em 2018. A mesma dieta foi imposta à Universidade Federal do Rio de Janeiro, à qual o Museu está/estava ligado. Seu orçamento caiu de 500 milhões de reais em 2013 para menos de 100 milhões em 2018.
Consequência dos cortes geométricos, burros e cegos, que não consideram prioridades (como explicar que um museu instalado em um prédio de 200 anos não tivesse estrutura antifogo?), não há, na Universidade e no Museu, reposição de funcionários que se aposentam, mas há a permanente ameaça de corte dos serviços de energia e água, e mesmo os serviços de limpeza são suspensos, por inexistência de recursos.
Quem atiçou a chama que em poucas horas consumiu o maior acervo de história natural, antropologia, etnografia e paleontologia da América Latina? Quem transformou em cinzas parte da memória nacional?
Esse projeto diabólico foi sempre o grande sonho acalentado da direita brasileira, que jamais se conciliou com as tentativas de fazer desta terra um país soberano, desenvolvido, rico. Nos anos 40 investiu contra o projeto de industrialização defendido por Roberto Simonsen.
O Brasil tinha de cumprir com sua ‘vocação agrária’, exportar alimentos para o mundo e importar produtos manufaturados dos EUA e da Europa, proclamava Eugênio Gudin, falando em nome da classe dominante. Nos anos 50 a mesma elite garantia que o Brasil não tinha petróleo e, portanto, não devíamos gastar dinheiro com pesquisa, tecnóloga e prospecção.
Essa classe dominante mesquinha procura agora destruir com toda e qualquer possibilidade de desenvolvimento e soberania, destruindo com nossos programas estratégicos – espacial, nuclear e cibernético (Estratégia Nacional de Defesa, Decreto nº 6.703 de 18/12/2008), porque, sabe ela, a base de qualquer projeto de soberania deita raízes num processo de industrialização, absolutamente condicionado ao saber científico. A destruição das bases de desenvolvimento científico e tecnológico de nosso país é sua condenação, desta feita definitiva, ao atraso e à pobreza.
O governo que corta os recursos da Universidade brasileira é o mesmo que aliena a Embraer, compromete a fabricação de nossos caças e põe em banho-maria o projeto de construção de nossos submarinos.
Quem não desenvolve sua própria ciência, renuncia à industrialização, e sem tecnologia e indústria não há soberania, porque não haverá, sequer, forças armadas dignas desse nome.
Cumpre, contra a crise e a perspectiva de seu aprofundamento, a história cobra a reação da sociedade científica e das forças políticas, da intelectualidade e dos agentes da cultura. Silenciar, cruzar os braços, evitar o confronto ideológico, é ceder espaço ao desmonte, acomodar-se com o presente e renunciar ao futuro.