Debate: Lutas dos movimentos negros seguem atuais e necessárias

Das atividades beneficentes para a compra de alforria de escravizados, passando pela fase assistencialista pós-abolição até chegar às estratégias de enfrentamento ao racismo, inclusive lançando mão da representação política, as lutas dos movimentos negros seguem atuais e necessárias até hoje. Sua origem, seus aspectos de organização e suas pautas foram tema do terceiro módulo do Curso Abdias Nascimento – Comunicação e Igualdade Racial.

Debate: Lutas dos movimentos negros seguem atuais e necessárias

O encontro aconteceu na última terça-feira (04), na sede do Sindicato dos Jornalistas do Ceará (Sindjorce), e contou com a colaboração do professor doutor Arilson dos Santos Gomes, docente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), da professora municipal e mestra, Joelma Gentil, e da militante do coletivo de juventude negra Enegrecer, Geyse Anne da Silva.

Pautar as lutas dos movimentos negros organizados continua sendo um desafio na mídia empresarial oligopolizada. Mas, com a popularização da internet, as redes sociais digitais têm sido o caminho encontrado pelos coletivos – sobretudo aqueles formados por jovens afrodescendentes – para dialogar com a sociedade. Se de um lado, a mídia hegemônica usa seu poder para invisibilizar as questões raciais, do outro, os movimentos conseguem furar os bloqueios a partir da viralização de conteúdos nas redes sociais. Longe de ser ideal, a estratégia mostra que, diante do deserto, os oásis continuam sendo construídos com muita luta organizada.

Construção hegemônica da cor aprisiona

Antes das falas dos palestrantes, os cursistas foram convidados a falar sobre uma situação de invisibilidade ou preconceito sofrido ou presenciado por eles mesmos em seus ambientes. Os depoimentos rememoraram situações vividas na infância ou juventude de alguns. “O racismo é um problema de toda a sociedade e enquanto não nos engajarmos para um real enfrentamento, estaremos fadados a renová-lo. Por isso que, enquanto problemática social, enquanto ferida infecciosa, o racismo, para ser enfrentado e destruído, precisa ser exposto, saturado, expurgado e denunciado. E é aí onde entra a comunicação antirracista, pois ela traz a sociedade pro debate”, afirmou o coordenador do curso, Rafael Mesquita.

“A construção da cor aprisiona de maneira subjetiva, de maneira que ficam traumas em virtude dessas construções”, comentou o professor Arilson dos Santos Gomes sobre os relatos dos alunos. Ele lembrou que a própria academia ensinava a superioridade de seres em função da cor da pele, ao passo em que a religião cristã desumanizava o negro para justificar sua exploração. “E isso persiste até hoje porque é reificado. No entanto, da mesma maneira que houve o trabalho de construção da cor, existiram pessoas que iniciaram a luta organizada para desconstruir essas percepções hegemônicas”, explicou.

Dos quilombos ao MNU

Segundo o professor da Unilab, ninguém escolhe ser de um grupo ou movimento social se não sofre ou não sente as questões que unem essas pessoas. Assim, os quilombos, as insurreições e as fugas podem ser consideradas formas de organização da população negra no Brasil. “Paul Singer tem uma frase que diz que o negro brasileiro sempre foi organizado. E de fato foi. Depois dos quilombos, as primeiras organizações formais vão se estruturar tendo como estratégia a compra de alforria de escravizados. Em 1872, temos a Sociedade Beneficente Floresta Aurora, em Porto Alegre e que existe até hoje”, pontuou.

Durante a primeira metade do século 20, a Frente Negra Brasileira (FNB) foi a mais destacada entidade negra no Brasil. Com um programa preestabelecido de luta, visava conquistar posições para o negro em todos os setores da sociedade. A entidade se expandiu como grupos homônimos em vários estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Bahia. Arregimentando os afrodescendentes, esta se converteu num verdadeiro movimento de massa, chegando a atingir o número expressivo de 20 mil sócios. A FNB proporcionou à população afrodescendente não apenas assistência social, mas meios de enfrentar e combater o preconceito.

Uma das primeiras ações afirmativas para a população negra brasileira remonta a 1935 e foi fruto de negociação da Frente Negra de São Paulo com Getúlio Vargas. À época, a organização levou ao então presidente o pleito para que fossem admitidas pessoas negras na Guarda Municipal de São Paulo. “Para eu estar aqui hoje falando com vocês, para ter a Maju Coutinho apresentado o boletim do tempo e o Lázaro Ramos fazendo comercial, foi necessária muita luta organizada. Luta essa que resultou na Lei 12.288 (Estatuto da Igualdade Racial), na Lei 10.639 (Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana), nas políticas afirmativas de cotas. Falta muito, ainda? Falta! Mas a sociedade é de disputa constante, de embate”, resumiu Arilson dos Santos Gomes.

Com o regime militar instaurado no país, o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (hoje apenas MNU) nasceu de uma insatisfação de um grupo de jovens negras e negros com o discurso nacional hegemônico. A fundação ocorreu no dia 18 de junho de 1978, mas foi só no dia 7 de julho do mesmo ano que a organização foi lançada publicamente, num ato nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. “Todos esses movimentos não são estanques. Claro que partem inicialmente da organização de algumas atividades e do protagonismo de algumas pessoas”, destacou o professor da Unilab.

Movimentos negros no Ceará

A pedagoga Joselma Gentil, que estudou o protagonismo feminino no movimento negro cearense, ofereceu aos cursistas um passeio pelo surgimento de organizações e coletivos como o Grupo de União e Consciência Negra, o Grucon, o Grupo Filhos d’África, o Grupo de Mulheres Negras no Ceará, os Agentes de Pastoral Negros (APNPs), o MNU e o Tambores de Safo. São entidades que inauguram a discussão de raça e classe nos movimentos sociais do Estado, partindo depois para debates específicos como a correlação com outros grupos sociais, o ativismo feminino e a saúde das mulheres, a religião, a comunicação e a cultura e, até recentemente, a luta feminista e antirracista, com enfoque nos diretos LBTs.

Antes do uso das ferramentas das redes sociais digitais, valia a boa e velha rádio comunitária improvisada (com micro system e microfone), o jornalzinho e até mesmo a discussão antes da roda de capoeira. Joelma falou da experiência dela e de outros jovens, no Grupo Filhos d’África, que trabalhava o protagonismo da juventude a partir da capoeira, também com atividades artísticas e de comunicação (inclusive com apoio do Curso de Comunicação Social da UFC). “Eu quis começar a minha dissertação de mestrado contando um pouco da minha história, de onde eu vim… o que foi um problema porque a academia é cheia de regras que muitas vezes não nos permitem expor o que queremos. Mas eu quis mostrar que não foi só eu, Joelma Gentil, que entrou na universidade, no mestrado, foi toda uma população negra que chegou”, disse.

Já a estudante de Humanidades da Unilab, Geyse Anne da Silva, narrou a constituição do grupo Enegrecer, criado em 2009, com o objetivo de organizar a juventude negra no processo de fortalecimento da participação juvenil no Brasil pós-criação do Estatuto da Juventude. As principais bandeiras do Enegrecer são o combate ao extermínio da juventude negra, ações afirmativa nas educação superior, processos de educação antirracista e protagonismo negro nos espaços de representatividade. Mostrou, ainda, imagens de vários eventos que organizaram ou participaram, afirmando que foram indutores dos encontros de universitários negros da União Nacional das e dos Estudantes (UNE).

Próximo encontro

Os encontros do Curso Abdias Nascimento acontecem sempre às terças-feiras, de 18 às 22 horas, no auditório do Sindjorce. No dia 11 de setembro, o tema em debate será o “Racismo à brasileira”, um estudo sobre as relações raciais no Brasil, analisando a cristalização da diferenciação racial e atos de extermínio da população negra.