Embraer, desnacionalização e soberania nacional

"É preciso que se constitua um movimento de todas as partes interessadas e alinhadas ao desenvolvimento da indústria aeronáutica, da tecnologia nacional, da defesa e da soberania do país para traçar uma agenda de discussões e para gerar proposições".

Por Artur Monte Cardoso*

Embraer Brasil - Foto: Arquivo Embraer

Quando foi anunciada publicamente a discussão entre a Boeing e a Embraer sobre uma possível “combinação” dos negócios, no final de dezembro de 2017, já estava à vista o que pode ser a última etapa da desnacionalização da empresa brasileira. Será um golpe duro, que deve ser repelido. Para além disso, é preciso entender quais são as relações que a Embraer estabelece com a economia brasileira, de modo a fazer com que a negação da venda possa se tornar a afirmação de uma empresa nacional. Isso só possível através de uma reorientação da empresa, para longe da estratégia financeira de geração de resultados para os acionistas e produtiva que a vincula somente a fornecedores estrangeiros.

A Embraer nasceu como fruto de um conjunto de fatores: a existência de uma base qualificada de técnicos e engenheiros, formados no ITA e/ou trabalhando no CTA, com bom trânsito pela FAB; um contexto econômico favorável (“Milagre Econômico”); um mecanismo de renúncia de Imposto de Renda, que poderia ser revertido para investimento em ações; o poderio dos militares durante a Ditadura de 1964; a existência de alguma base industrial que dava maior suporte, entre outros[2]. Além disso, é fundamental olhar para como as tentativas anteriores de industrialização aeronáutica refletiram na estratégia colocada em prática pelos fundadores da empresa.

Ao longo dos anos 1930 a 1960, houve inúmeras experiências para produzir aviões em série no país, mais ou menos longevas ou exitosas, mas que fracassaram no final: a Fábrica Brasileira de Aviões, a Fábrica do Galeão, a Companhia Aeronáutica Paulista, a Fábrica Nacional de Motores, a Fábrica de Lagoa Santa, a Neiva, entre outras[3]. Em todas elas, pesaram as debilidades de uma economia subdesenvolvida – que persistem até hoje: a concentração da renda, o mercado pequeno, a precária base técnica e industrial, a fragilidade do Estado e a inexistência de uma burguesia nacional, vinculada ao mercado nacional e desejosa de crescer junto com o país. E isso condicionou duas características da Embraer. Primeiro, ela surgiu como uma empresa estatal, após a equipe liderada por Ozires Silva fazer várias tentativas de atrair empresários para assumir a produção do Bandeirante, todas em vão. Segundo, ela nasceu especializada em projeto e montagem, sem o desejo de constituir uma indústria aeronáutica integrada ou verticalizada – fator ao qual se atribuía parte dos fracassos anteriores.

No debate público atual, é muito difundido o mito de que o período estatal foi um “mal necessário” para o nascimento da empresa, cujo sucesso só veio após sua privatização, em dezembro de 1994. Nada mais falso. Essa narrativa ignora um processo longo e penoso de dificuldades, fracassos e sucessos no aprendizado de tecnologias de projeto e de produção e a criação de experiência na venda de aeronaves e de serviços. Em todo esse período, muitos recursos públicos foram investidos em financiamentos, compras e vários tipos de apoio, do técnico ao diplomático, tendo como resultado aviões de qualidade e sucesso comercial, como o Bandeirante e o Brasília. Mesmo no ápice da sua crise, no início dos anos 1990, boa parte do que viabilizou a recuperação posterior à privatização já havia sido feita: a Embraer foi entregue em leilão já “saneada”, com uma dívida reduzida – parte assumida pelo governo – e com o projeto do ERJ-145, o primeiro sucesso da empresa na fase privada, em fase adiantada. E até os dias de hoje a empresa conta com financiamentos públicos para o desenvolvimento de aeronaves e para exportações, além dos programas de aquisição de modelos militares – basta ver o cargueiro KC-390, que teve injeção de bilhões de reais em recursos públicos. Contudo, não somente não há mais orientação pública sobre a empresa, como ela vem sendo progressivamente desnacionalizada.

Pelo menos dois fatores são importantes para explicar a desnacionalização em curso da Embraer, que pode ser concluída com a venda para a Boeing: a lógica que norteia a gestão dos acionistas após a privatização e a estratégia produtiva que deriva daí. Desde a privatização, o consórcio vencedor do leilão de 1994, liderado pelo grupo Bozano Simonsen com fundos de pensão de empresa estatais, impôs uma gestão típica do capitalismo contemporâneo: reestruturação produtiva, enxugamento de pessoal e terceirização junto com mudanças organizacionais e novas tecnologias de produção. Seu objetivo final era maximizar o resultado para o acionista, valorizando suas ações e pagando bons dividendos. Paralelamente, foi sendo incentivada a divisão do controle da empresa com muitos outros acionistas, inclusive estrangeiros, o que ocorreu com a abertura do capital na Bolsa de Nova Iorque. Em 2006, a pulverização do controle foi institucionalizada, levando progressivamente à situação atual, em que a maioria do capital é negociado nos Estados Unidos e é de posse de estrangeiros[4]. Mesmo que os acionistas nacionais sejam maioria nos votos da Assembleia Geral da empresa, é claro que os interesses das instituições financeiras estrangeiras é levado em conta nas decisões do Conselho e da Diretoria. Então, o primeiro vetor de desnacionalização é uma gestão condizente com a financeirização, o padrão sistêmico de acumulação e riqueza do capitalismo contemporâneo que submete tudo e todos aos resultados para os acionistas e aos humores dos “mercados”.

O segundo ponto está em quais relações a empresa estabelece com o espaço econômico brasileiro. Por se tratar de uma empresa especializada desde o seu nascimento, o desenvolvimento de uma cadeia nacional de fornecedores nunca foi prioridade. Mesmo quando houve programas específicos, nunca se chegou a criar empresas capazes de fornecer subsistemas ou sistemas com projeção internacional. Durante o desenvolvimento e produção do ERJ-145, na transição da empresa estatal para a privada, foi implementada a estratégia das “parcerias de risco”, onde a brasileira selecionou fornecedores que pudessem investir recursos e tecnologia durante o desenvolvimento em troca da exclusividade no fornecimento. A partir daí, o número de empresas fornecedoras caiu drasticamente, com a Embraer dando preferência para as grandes empresas transnacionais. O resultado só poderia ser a desqualificação das empresas nacionais, relegadas, em sua maioria, à condição de subcontratadas precárias[5]. A despeito do resultado do sucesso da Embraer que é condensado dentro da empresa, uma parte relativamente baixa do valor de uma aeronave é revertida em renda e em empregos no país. E as parcerias de risco, ao manterem a Embraer especializada, garantem maior controle dos acionistas nos resultados que dela pretendem extrair.

Surge, daí, um paradoxo. A Embraer é a maior empresa brasileira em um setor de alta tecnologia, posto construído pelo esforço dos técnicos, operários e engenheiros da empresa em um longo processo de aprendizado. Disso resulta que ela se projetou, progressivamente, como uma multinacional, bem-sucedida nos seus nichos de atuação. Contudo, ao contrário do que ocorreu historicamente em outros países, esta empresa não se afirmou enquanto parte de uma indústria nacional vinculada ao mercado nacional (e daí para o global), como Boeing e Airbus. O resultado do crescimento da empresa nos últimos anos sempre “escapa” para os fornecedores externos e para os acionistas. A empresa se remete aos países centrais, que ditam os padrões tecnológicos e produtivos, os mercados, as escalas produtivas e financeiras. Isso se vê pelas iniciativas de transferir linhas de produção para a China (ERJ-145) e para os Estados Unidos (Aviões Executivos e Super Tucano) ou pela dependência que se estabelece dos fornecedores ou parceiros estrangeiros.

Sem estar vinculada à indústria brasileira nem ao mercado brasileiro, o único interesse que resta a uma empresa guiada pelos interesses de financistas, em sua maioria estrangeiros, é explorar a força de trabalho brasileira e obter benefícios do Estado. As práticas da empresa com relação às negociações sindicais, às demissões, à jornada de trabalho e diferenças de salários para outros países estão fartamente documentadas pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e outros trabalhos[6]. Quanto ao Estado, a empresa obtém parcela significativa dos financiamentos no Brasil, pelo BNDES e FINEP. E qual é o retorno para o país? Relativamente restrito aos seus trabalhadores e outros da cadeia operando no país.

A lógica das empresas transnacionais transcende e atropela os interesses nacionais. Esse tipo de empresa controla recursos financeiros, produtivos e os trabalhadores em todo o mundo e os organizam segundo seus interesses[7]. Na indústria aeronáutica, isso é ainda mais forte, já que a competição se tornou muito acirrada, com a inovação exigindo empresas maiores, construídas com fusões e aquisições – sempre com o apoio dos governos de cada país[8]. O que nós, brasileiros, precisamos saber é que isto é absolutamente coerente com o capitalismo global e não há nada de errado nisso, do ponto de vista da grande empresa e de seus acionistas. Mas isso se confronta diretamente com os interesses do Brasil e dos trabalhadores da Embraer e de empresas fornecedoras. Daí que precisemos lutar contra essas várias desnacionalizações da Embraer, contra a sua lógica transnacional e do grande capital.

A Embraer faz parte de uma mudança maior que ocorre no Brasil. De uma iniciativa nacional de produção de aeronaves para as necessidades do país, ela se tornou uma instância da indústria internacional dentro do Brasil, uma espécie de enclave controlado pelo grande capital estrangeiro. É um ótimo retrato da desindustrialização que ocorre e que está condenando o país ao desastre social. Estamos passando por um processo de reversão neocolonial[9], em que o nosso país será incapaz de colocar limites ao capitalismo transnacional, que aqui dentro opera de maneira selvagem, sem quaisquer vínculos ou pudores, em associação com os empresários locais e os governos. Enquanto isso, a população é relegada à insegurança do desemprego, da precarização e da falta de serviços públicos e direitos essenciais.

A tarefa imediata do povo brasileiro e dos trabalhadores da Embraer, que são lideranças legítimas deste processo, é impedir a venda da Embraer para a Boeing e repelir outras investidas como essa. Se a Embraer hoje já é praticamente uma empresa estrangeira operando no país, esse novo passo seria ainda mais desastroso, implicando aos poucos a perda do conhecimento técnico e das instalações produtivas e dos empregos. Ao barrar essa investida imperialista sobre o Brasil, daremos um recado claro de que desejamos e podemos mandar em nosso próprio nariz.

Na sequência, e tão logo quanto possível, é preciso que se constitua um movimento de todas as partes interessadas e alinhadas ao desenvolvimento da indústria aeronáutica, da tecnologia nacional, da defesa e da soberania do país para traçar uma agenda de discussões e para gerar proposições. Quando barrarmos a venda, a Embraer ainda estará em um cenário competitivo difícil, em que o Brasil não pode concorrer em inovação e capacidade financeira contra os EUA ou a Europa. Será uma transição difícil e incerta, que provavelmente passará pela renacionalização de seu controle. O importante é que possamos chegar a uma empresa em que exista também uma orientação estratégica para produtos e tecnologias de interesse nacional e a criação de fornecedores e empregos no país. Isso só é viável se este movimento participar do processo de revolução brasileira, que é a única saída construtiva para a crise em que se encontra o país, permitindo que nossa sociedade possa ter soberania, democracia e igualdade.


*Artur Monte Cardoso é  economista, doutor em Ciências Econômicas pela Unicamp (fevereiro/2018) com a Tese “A Embraer e a questão nacional”

Referências bibliográficas

[2] Maria Cecília Spina Forjaz. As origens da Embraer. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1 (pp. 281-298). 2005. E ainda: Fernando Sarti e Marcos José Barbieri Ferreira. Evolução da Indústria Aeronáutica Brasileira entre as décadas de 1930 e 1980: estrutura de mercado e capacitação tecnológica. Revista da UNIFA. Rio de Janeiro, Vol. 25, n. 31. (dez. 2012). P. 101-110.

[3] Roberto Pereira de Andrade. A Construção Aeronáutica no Brasil. 1910/1976. São Paulo: Editora Brasiliense, 1976.

[4] Lívia de Cássia Godoi Moraes. Pulverização de capital e intensificação do trabalho: o caso da EMBRAER. 2013. 353 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP

[5] Ruy Quadros et al. Mapeamento da Cadeia Produtiva Aeronáutica Brasileira (CAB). In: Guilherme Castanho Franco Montoro e Marcio Nobre Migon. Cadeia produtiva aeronáutica brasileira: oportunidades e desafios. Rio de Janeiro: BNDES, 2009. Vanessa de Lima Ferreira; Mario Sergio Salerno; Paulo Tadeu de Mello Lourenção. As estratégias na relação com os fornecedores: o caso da EMBRAER. Gest. Prod., São Carlos, v. 18, n. 2, p. 221-236, 2011.

[6] Nazareno Godeiro (Org.) A Embraer é nossa! Desnacionalização e reestatização da Empresa Brasileira de Aeronáutica. São Paulo: Editora Sundermann, 2009.

[7] Celso Furtado. “O capitalismo pós-nacional”. In: Prefácio à nova economia política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

[8] Sobre a indústria aeronáutica, ver Marcos José Barbieri Ferreira (2009). Dinâmica da Inovação e mudanças estruturais: um estudo de caso da indústria aeronáutica mundial e a inserção brasileira. 2009. 257 p. Tese (Doutorado em Economia) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, São Paulo.

[9] Plinio de Arruda Sampaio Júnior. Globalização e reversão neocolonial: o impasse brasileiro. In: Guillermo Hoyos Vásquez. Filosofía y teorías políticas entre la crítica y la utopía. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2007.