A Constituição entre passado e futuro

“O futuro é, por definição, aberto. Cláusulas pétreas, como normas de autoproteção constitucional, podem muito pouco contra a irracionalidade, as revoluções e os motins. O retrocesso é uma ameaça permanente em toda ordem jurídica porque a vigência do direito anda de mãos dadas com sua eficácia”.

Por Juliana Diniz*

Ilustração: Helena Ene/Quanta Academia de Artes

Em 2018 comemoramos os trinta anos de promulgação da carta constitucional que demarcou o fim da ditadura e o reencontro com uma tentativa de democracia. As instituições, assim como as pessoas, têm uma identidade, são produtos da história e simbolizam uma dinâmica complexa entre o que fizemos do passado e o que ainda se pode pretender do futuro. Uma constituição, imperando sobre o presente, retrata uma herança cultural e política e lança luz sobre caminhos possíveis. Pensar sobre a identidade da constituição de 1988 é refletir sobre a tradição que ela afirma e suas possibilidades de mudança. Um exercício de leitura do tempo e da nossa virtude como seres da cultura: vivemos em estado de inacabamento, de abertura infinita ao novo.

A constituição de 1988 afirma um conjunto de valores, ideias e princípios que se desenvolvem desde as primeiras revoluções liberais, ainda no século XVIII. Segundo esse ideário, uma constituição é o ato formal de fundação de uma ordem política, um conjunto de normas concebidas para estruturar a arquitetura do estado conforme determinadas escolhas, que se assentam em alguns alicerces fundamentais: a ideia de que a soberania reside no povo, que o poder do estado é exercido em seu nome, que a autoridade precisa ser limitada para evitar o arbítrio e que há direitos inalienáveis que nem o estado nem os indivíduos podem violar. Esses alicerces têm resistido aos séculos e ainda definem a identidade das constituições democráticas do mundo ocidental contemporâneo. Ainda somos, por assim dizer, herdeiros da tradição do constitucionalismo e da revolução francesa.

Nossa constituição é, também, retrato da década e do país em que foi criada, e nisso se concentra sua identidade mais local, para além da tradição do constitucionalismo europeu. Depois de um longo inverno representado pelo regime militar, a carta de 1988 cristalizou no imaginário coletivo o nascimento simbólico de uma nova ordem, não só jurídica, mas cultural: a do Brasil democrático, pluralista e republicano. Ela sinaliza, assim, um pacto de redemocratização, e nesse ponto se concentram suas principais ambiguidades.

É a constituição de uma sociedade desigual e fragmentada, com visões de mundo muitas vezes incompatíveis, em franca disputa no tecido social. As disputas estão internalizadas no texto constitucional, na forma de tensões normativas: é um sistema que busca a conciliação de princípios aparentemente contraditórios, como, por exemplo, a coexistência de uma economia capitalista fundada na livre concorrência e uma concepção de propriedade privada condicionada pelo bem comum e pela função social.

Essas ambiguidades que permeiam seu texto não são propriamente um desvalor ou patologia, e sim uma condição inevitável das democracias contemporâneas, como indicam filósofos políticos, sociólogos e juristas. A modernidade inaugurou uma nova ordem fundada no reconhecimento de uma liberdade fundamental que faz coexistir na vida pública uma infinidade de modos de vida e projetos de futuro conflitantes. Não há liberdade e autonomia possível sem a aceitação de que a diferença é o único ponto que temos em comum. Visões sobre homem, sociedade, educação, economia, etc., estão em franca disputa porque somos iguais em liberdade.

O pluralismo é, assim, a grande causa de uma crise que experimentamos não só como crise política ou econômica, mas de sentido, ética. Há duas formas de encará-la, e aí está a chave do futuro da constituição. O pluralismo pode ser compreendido como fator de desagregação social e ameaça. Essa concepção nos levará à identificação de inimigos públicos e à força como forma de suprimir a diferença. Eis o caminho do totalitarismo, e o destino da carta de 1988 será sua corrosão e substituição por outra ordem jurídica, compatível com valores não-pluralistas. Um caminho alternativo é, todavia, possível, e me posiciono em favor dele, num exercício de fé iluminista. Ele indica o dever de proteção, celebração e reafirmação da carta constitucional vigente na medida em que ela representa a defesa do pluralismo como fator de riqueza cultural e de condição de liberdade consciente. O caminho que cada um de nós deseja seguir é traçado a cada escolha, a cada voto, a cada discurso, a cada gesto.

O futuro é, por definição, aberto. Cláusulas pétreas, como normas de autoproteção constitucional, podem muito pouco contra a irracionalidade, as revoluções e os motins. O retrocesso é uma ameaça permanente em toda ordem jurídica porque a vigência do direito anda de mãos dadas com sua eficácia. Mesmo que eu reconheça o valor da carta de 1988, seria ingênuo afirmar que seu destino é luminoso, a sua perenidade não está garantida.

Os próximos trinta anos não podemos prever. Incrédulos, testemunhamos o renascimento de discursos obscuros de negação dos valores de constitucionalismo democrático e do modo de vida que desenvolvemos, com muito custo e sangue, durante séculos. A única previsão possível é a de que somos senhores e filhos do tempo. Por sermos livres, sabemos de antemão que o futuro que podemos ter será sempre uma herança, boa ou má: o espólio das escolhas que fizermos hoje.