#EleNão: as mulheres na (r)evolução e os homens na contramão

As mulheres, que cada vez mais carregam os homens e as famílias em suas costas, estão, neste momento, carregando também a nossa combalida democracia. Sem o voto delas, Bolsonaro, provavelmente o mais ignóbil e inapto candidato à Presidência da República em toda a história (e olhe que a concorrência é grande!) já levaria a disputa no primeiro turno.

Por Daniel Costa Lima*

Registro do ato em São Paulo por Márcia Zoet/ilumina - Márcia Zoet/ilumina

Com o voto das mulheres, a chance disso acontecer é praticamente nula e todos os cenários de segundo turno apontam para um confronto bastante apertado contra a chapa composta por Fernando Haddad (PT) e Manuela D’Ávila (PCdoB).

Até ai nenhuma novidade. Desde as primeiras pesquisas, ficou evidente que definitivamente não são as mulheres que puxam a candidatura do ódio para cima. Mesmo assim, o óbvio precisa ser dito. Somos nós, os homens, os responsáveis pelo grave risco que o país corre nesse momento. Mas não quaisquer homens, são principalmente homens brancos, adultos, com segundo ou terceiro grau completos e bom poder aquisitivo.

Mesmo não tendo culpa no cartório, as mulheres corajosamente (para variar) decidiram se expor, se arriscar e tomar as ruas para tentar frear o batalhão do backlash (reação contrária) machista, misógino, classista, racista e LGBTQfóbico através da mobilização #EleNão.

Ainda é cedo para avaliar o impacto dessa pujante mobilização, mas o que não precisamos de sequer mais um segundo para atestar é que a maioria das mulheres mais uma vez aponta e constrói o caminho da boa (r)evolução e uma grande parte dos homens insiste em acelerar o seu decrépito e tirânico bonde de privilégios na contramão do curso civilizatório.

Para quem deseja compreender melhor esse movimento, sugiro a leitura do artigo “Bolsonarismo, antipetismo e #EleNão”, de Joanna Burigo. E para quem deseja compreender melhor por que esse movimento é tão necessário, sugiro fortemente o artigo “#EleNão. #NósSim”, da sempre lúcida, genial e contundente Eliane Brum. Por sinal, penso que esse texto deveria ser leitura obrigatória para todos/as os/as estudantes adolescentes, em especial, para os meninos. Digo mais, se você tem pouco tempo, largue agora o meu texto e siga imediatamente para o dela…

Para os/as que ficaram, passarei agora a tentar ligar os pontos entre o bonde dos privilégios masculinos e o batalhão do backlash, que são a força motriz por traz da candidatura de Bolsonaro – talvez ainda maior do que o antipetismo – e as masculinidades e as paternidades, tema desta coluna.

Para isso, peço licença para narrar uma história acontecida no agora longínquo mês de agosto, quando à convite do SESC, viajei para São Paulo para participar de uma rodada de conversa sobre paternidades. Como estávamos no meio duma mudança e em pleno período de adaptação de Francisco na escolinha, optei por um vôo de bate e volta e cheguei ao local do evento em cima da hora e esbaforido, mas mesmo assim, muito animado para dialogar sobre a apresentação que havia preparado “Paternidade envolvida: para quem quer ou para quem pode?”.(1)

Lá chegando, fui direcionado a uma sala bonita, climatizada e com cadeiras confortáveis. Tudo parecia perfeito. Na verdade, quase tudo, pois o mais importante estava faltando: o público. Éramos, ao todo, sete pessoas, sendo apenas três participantes, dois homens (nenhum deles pai) e uma mulher.

Eu já devia estar acostumado a situações como essa, afinal, trabalho tentando sensibilizar e envolver os homens com a questão da equidade de gênero desde o fim de 1999. Já fiz oficinas sobre paternidade e cuidado onde éramos dois ou três facilitadores/as e apenas um participante e já dei palestras sobre homens pelo fim da violência contra as mulheres em auditórios imensos com 10 gatos pingados na plateia. Para não parecer que o meu trabalho é um fracasso retumbante, também já falei para auditórios lotados, organizei grandes mobilizações de rua, dei muitas oficinas com inscrições esgotadas mas, com uma exceção aqui e acolá, algo quase sempre se repete: o público é majoritariamente composto por mulheres e as pessoas que me convidam, também.

No meu primeiro texto, escrevi que vivenciar a paternidade sem fazer uma reflexão profunda sobre a nossa masculinidade e sem desconstruir o nosso machismo é, no mínimo, desperdiçar uma grande oportunidade. Como era o meu texto de apresentação, acho que não quis assustar os leitores, talvez por isso eu não tenha escrito tudo o que gostaria. Então agora vai.

Reivindicar o direito de brincar e demonstrar o seu afeto para o seu(s) filho(s) ou a(s) sua(s) filha(s) sem no entanto reivindicar a divisão do trabalho de cuidado dessas crianças e também das tarefas domésticas é algo que, em última instância, apenas nos brinda com ainda mais privilégios. Obviamente, demonstrar afeto e brincar é importantíssimo para o desenvolvimento das crianças, para o fortalecimento do vinculo pai-filha/o e para os próprios homens, no entanto, se você não vai além disso, me desculpe, mas você está sendo um canalha com a mãe da(s) criança(s).

Penso que esse é um enorme e sintomático problema entre os homens. Nós geralmente abraçamos a causa feminista e a busca pela equidade de gênero, mas só até a segunda página, também conhecida como “nossos privilégios”. É claro, estou me referindo aos homens que, como eu, vêm buscando uma reflexão sobre as masculinidades e o machismo, que felizmente, são muitos e cada vez mais numerosos. A questão com os homens que votam em Bolsonaro é muito mais grave.

Para esses, como diz Arnaldo Cezar Coelho, a “regra é clara”: todas as “minorias” devem se curvar aos homens brancos, cis, heterossexuais e cristãos, autoproclamados e ungidos como “a norma”. Reproduzindo as palavras do candidato fascista, vomitadas no dia 10 de fevereiro de 2017: “As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem”.

A Professora estadunidense Judith Kegan Gardiner define a masculinidade como “…uma construção nostálgica, sempre perpassada pela falta, perdida ou prestes a se perder, estando a sua forma ideal localizada em um passado que avança a cada geração, se tornando assim cada vez mais intangível.”(2)  (tradução minha).

Por isso, o voto masculino em Bolsonaro não é uma simples escolha, mas, sim, uma reação e uma ameaça direta às mulheres, já que, sem a sua submissão, a masculinidade sonhada por esses homens não fica apenas mais difícil, ela se torna im-pos-sí-vel. É por isso que o diálogo com muitos defensores desta chapa é praticamente inviável. É por isso também que grande parte de seu eleitorado não conhece nem tem interesse em conhecer o seu desastroso plano de governo, pois o que de fato lhes captura é tão vil que não pode ser colocado em documento algum.

Assim, não tenho a menor expectativa de ser lido por eleitores ferrenhos dele. O meu intuito aqui é talvez alcançar um ou outro que esteja sendo seduzido pela mensagem do ódio mas que ainda não tenha passado para o “outro lado”. Principalmente, gostaria de dialogar com os milhares de homens que, como eu, se envolveram com o #EleNão e lhes dizer que eu estou seguro de que a nossa participação nesse movimento é importantíssima, mas que estou ainda mais seguro de que estamos longe, muito longe, de fazer o suficiente.

Em primeiro lugar, acho que já passou da hora de tirarmos dos ombros das mulheres, em especial de nossas parceiras, a responsabilidade de nos guiar (como se fôssemos crianças), em um processo de “desconstrução”, seja em relação à nossa masculinidade ou à forma como exercemos a paternidade. Em segundo, acredito que uma verdadeira e profunda mudança apenas acontecerá quando além do #EleNão (que pode ser aplicado para vários políticos), tivermos a coragem de nos olhar no espelho e dizer “Você não!”, identificando em nós mesmos diversos traços que compõem a caricatura grotesca que é Bolsonaro.

As mulheres, as pessoas LGBTQ e a população negra colocaram, com muito suor e sangue, o mundo em um trilho destinado à equidade e ao reconhecimento da diversidade como a mais fantástica característica humana. Neste domingo, dia 7 e depois, no dia 28 de outubro, teremos uma oportunidade concreta de demarcarmos se seguiremos esse caminho rumo ao fortalecimento do processo civilizatório, ou se motivados pela manutenção de nosso poder e de nossos privilégios, mais uma vez insistiremos em tomar a contramão da história.

É hora de irmos para as urnas munidos de alegria, amor e coragem, pois como escreveu o mestre João Guimarães Rosa:

"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!”.(3)

#ELENÃO!

1 Em setembro, dei palestra similar (com o mesmo titulo) no Ministério Público Federal de Pernambuco. No vídeo, a minha participação se inicia no minuto 33.
2 Judith Kegan Gardiner. Introduction. Ed Gardiner. Masculinity Studies and Feminist Theory New York: Columbia University Press, 2002. 1-30.
3 João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas.

*Daniel Costa Lima é pai de Francisco, psicólogo, mestre em saúde pública, consultor independente no campo de gênero, masculinidades, paternidade e cuidado e violência baseada em gênero e colunista do Portal Vermelho.