Arruda Bastos: Da criança de 1964 ao Médico pela Democracia

"O momento é muito preocupante e com uma conjuntura que pode levar o Brasil, mais uma vez, a mergulhar em anos sombrios, com desprezo da recente democracia alcançada. São as mesmas forças reacionárias que se levantam, propagando ódio, ufanismo, fascismo, falso moralismo, anticorrupção, anticomunismo e agora antipetismo. É a história que se repete em um novo patamar”.

Por Arruda Bastos*

Arruda Bastos

Eu sou um “Médico pela Democracia” e é claro que empunho as bandeiras do Movimento que, inclusive, ajudei a criar. Entretanto, tenho outras razões do coração e, como diria Blaise Pascoal, “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.

Para início de conversa, há muitos anos tenho a sensação de que minha participação contra a ditadura de 1964 ficou incompleta, adormecida, digo até mesmo em construção, e não por vontade própria, mas pela junção de fatores determinantes na ocasião, como minha tenra idade e a formação que recebi.

No fatídico 31 de março de 1964, o dia do início do Golpe Militar, eu era uma criança de 9 anos e não sabia ao certo o que ocorreria na nossa “Terra Brasilis”. Na época, inocente que era, não tinha como resistir às trevas que rondavam sorrateiramente o país.

Filho de classe média, tive uma formação pautada na doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana, tanto em casa como em escolas privadas de ensino religioso, um período que fincou em mim, para toda vida, a ética, a fé, a caridade e o serviço. Só tenho que agradecer a meus pais e professores.

Entretanto, as discussões políticas, até mesmo pelo período discricionário, propaganda oficial e estilo das escolas nas quais estudei, não eram enfrentadas de frente. Fiquei em um mundo ficcional por muitos anos.

A ditadura transcorreu na égide do lema do governo militar, “Brasil: Ame-o ou deixe-o!”, que era levado a adultos e crianças, e ostentado em objetos e nas janelas das casas, dos automóveis, bem como nas letras de músicas, como uma famosa de Dom e Ravel, que sei de cor ainda hoje: “Eu te amo, meu Brasil, eu te amo! / Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil / Eu te amo, meu Brasil, eu te amo! / Ninguém segura a juventude do Brasil…”.

O país assistiu a uma das maiores campanhas publicitárias de massa da nossa história, na época patrocinada pela própria Ditadura, pela golpista Rede Globo, por outros órgãos da grande mídia e por empresas nacionais e multinacionais. Uma alienação só.

Fiz esta digressão para chegar ao ano de 1974, quando entrei no curso de Medicina na Universidade Federal do Ceará (UFC). Tinha, na época, 19 anos e a ditadura militar já se arrastava por uma longa década. Foi aí que me deparei com a realidade nua e crua da repressão, da tortura, da censura da imprensa, dos desaparecimentos e de muitas mortes.

Na faculdade, fui contemporâneo de colegas, de mais idade, que sumiram do mapa como por um encanto. Não tínhamos direito de reunião, a UNE (União Nacional dos Estudantes) tinha sido fechada, faltava democracia, foi um período terrível. Parte da minha adolescência e juventude foi perdida, vivíamos a ilusão de um País que não existia.

Não podemos correr o risco de tudo acontecer novamente. Talvez resida aí um dos motivos da minha luta, haja vista que, com a minha atual experiência e no alto dos meus sessenta e três anos, sinto como em 1964: o Golpe e o fascismo estão em andamento e podem se consumar com o resultado do próximo pleito eleitoral.

O momento é muito preocupante e com uma conjuntura que pode levar o Brasil, mais uma vez, a mergulhar em anos sombrios, com desprezo da recente democracia alcançada. São as mesmas forças reacionárias que se levantam, propagando ódio, ufanismo, fascismo, falso moralismo, anticorrupção, anticomunismo e agora antipetismo. É a história que se repete em um novo patamar.

Não desejo a ninguém a minha sina, nem que tenham que escrever daqui a alguns anos para seus filhos e netos, como faço agora, um texto lamentando não ter saído de sua garganta os gritos conscientes de “Não ao fascismo” e “Ele não”.

Sonho com uma vida mais justa, com melhor distribuição de renda, democracia, liberdade e uma vida melhor para todos, e não com um governo que defende a volta dos 21 anos de escuridão e trevas pelos quais passei.

Conjecturando, digo que, se tivesse por volta dos 16 anos em 1964, sem dúvida teria participado de todas as lutas, passeatas, manifestações, resistências e tudo mais para evitar que ela se consumasse.

Agora é uma segunda chance para mim e para muitas outras crianças de 1964, para completar em nossa vida a obra inacabada da luta contra a volta de uma ditadura e do fascismo no nosso Brasil. É a oportunidade também para os jovens e adultos de hoje que não desejam o retrocesso na sua liberdade e nos seus direitos.

Vamos, portanto, influenciar e dizer o que pensamos nas nossas redes sociais, junto às famílias, à nossa categoria profissional, aos amigos, enfim, a todos os nossos compatriotas.

Não vai ser por falta de um grito que vamos perder a boiada. Ainda temos como combater a instalação de um grande retrocesso no Brasil. Não estamos sós! Ele Não! Não ao fascismo!


*Arruda Bastos é médico, professor universitário, ex-secretário de Saúde do Ceará, membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e um dos coordenadores do Movimento Médicos pela Democracia.

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