André Haguette: Almas desnudadas

"Até a campanha eleitoral, nós, as classes médias, considerávamos-nos cidadãs, liberais e democráticas. O vendaval Bolsonaro desvendou nossas almas e expôs à luz do dia todo o nosso atraso ético e social, velho de cinco séculos, que cuidadosamente tentávamos recalcar no fundo de nossas entranhas. Em vão”.

André Haguette*

Nova classe média

A campanha de Jair Bolsonaro foi um vendaval que revirou os segredos mais escusos e escondidos de nossas almas, isso atrelado e camuflado por uma raivosa rejeição ao lulopetismo. Tínhamos orgulho em nos considerarmos pacíficos, hospitaleiros, piedosos, cordiais e afetuosos no trato do outro, até que um obscuro parlamentar do baixo clero, portador de um discurso raivoso, que apelou a sentimentos primários, exaltando a ditadura militar e a tortura, com declarações ofensivas a mulheres, a negros e a homossexuais, menosprezando as instituições democráticas, desnude nossas almas e nos mostre como realmente somos: preconceituosos, conservadores, autoritários, burocraticamente religiosos e moralmente atrasados.

Mas como poderíamos abençoar a ascensão social de pobres, negros, pardos ou brancos, se somos descendentes de senhores de escravos, filhos da casa grande ou de capitães do mato, membros de uma igreja com passado escravocrata? Como poderíamos nos alegrar com os avanços da lei do trabalho doméstico, se nos criamos em famílias em que a empregada doméstica dormia nas nossas casas, sem horas fixas para trabalhar e descansar, sem remuneração digna e sem direito nenhum?

Como temeríamos a ditadura militar, se nossos pais participaram da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, rosário na mão, chamando as forças armadas a interromper o regime democrático e a por fim a movimentos por reformas básicas justas e por "sete palmos de terra e um caixão"? Como nos envergonharíamos de insultos à dignidade das mulheres, se toleramos agressões e assassinatos diários, assédio sexual e pagamos às mulheres salários inferiores aos dos homens para trabalho igual?

Como condenaríamos declarações racistas e homofóbicas, se, embora professando não sermos racistas e homofóbicos, não queremos ter noras ou genros negros, nem filhas ou filhos homossexuais? O que dizer das cotas que odiamos pois elas tiram vagas de nossos filhos e nossas filhas nas melhores universidades, as públicas, e as consideramos contrárias à meritocracia, como se ricos e pobres competissem em pé de igualdade? Como reagirmos à ameaça de extinção do Bolsa Família se pensamos que o programa tornou o "povo humilde" preguiçoso e insolente, já que não quer mais trabalhar por um "agrado", demanda com carteira assinada e uma vida melhor para seus filhos?

Até a campanha eleitoral, nós, as classes médias, considerávamos-nos cidadãs, liberais e democráticas. O vendaval Bolsonaro desvendou nossas almas e expôs à luz do dia todo o nosso atraso ético e social, velho de cinco séculos, que cuidadosamente tentávamos recalcar no fundo de nossas entranhas. Em vão. Como, com efeito, não sermos machistas, racistas, homofóbicos, autoritários, se nossos bisavôs ou tetravôs ficaram bestializados diante da República que nunca desejaram e jamais por ela lutaram. Continuamos bestializados e inconformados, incapazes de soletrar na nossa prática social as letras das palavras igualdade e equidade que caracterizam a vida republicana. Continuamos desiguais e injustos, moralmente atrasados, insensíveis ao "povo humilde", que se torna insolente, pensamos, em querer "algo mais" do que o Bolsa Família, a violência da periferia e nosso desrespeito cotidiano. Sim, esse povo aspira a ser igual a nós, pode?

*André Haguette é sociólogo e professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC).

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