“Bolsonaro inicia guerra nas escolas”, diz jornal francês Le Monde
O jornal Le Monde publica em sua edição deste domingo (18) uma extensa reportagem sobre a "cruzada" da extrema direita brasileira contra o sistema educacional, encorajada pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro. Entre outras intenções, o diário diz que o objetivo de Bolsonaro é atenuar as críticas à ditadura.
Publicado 17/11/2018 20:20
Logo na capa, o diário francês adverte: "a extrema direita brasileira, convencida de que a escola é assombrada pelo comunismo e pela apologia de comportamentos desenfreados, está apoiando um projeto de lei que visa obrigar os professores à neutralidade e ao respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis", explica Le Monde. Assim, os professores estariam impedidos de contradizer as famílias a respeito de temas como educação moral, sexual e religiosa. "E Bolsonaro ainda quer que os alunos possam filmar seus professores para denunciá-los", acrescenta.
Le Monde descreve uma cena que já se tornou comum entre os apoiadores de Bolsonaro. Em pleno Congresso, o deputado e ex-policial Eder Mauro fez sinal que iria metralhar deputados da oposição que pediam respeito aos professores no plenário da Casa. O tumulto aconteceu durante a apresentação do projeto "escola sem partido", no dia 13 de novembro. Fomentada pela extrema direita e o lobby evangélico, o texto, rebatizado de “lei da mordaça” pela oposição, é baseado na ideia de que haveria hoje escolas dominadas pelo comunismo, ensinando valores depravados e divulgando a “teoria de gênero”.
Socialismo escolar
O jornal destaca que para “lutar contra o socialismo escolar”, o texto pretende tirar toda a legitimidade dos professores e das escolas em contradizer as famílias no tema da educação moral, sexual e religiosa. Le Monde destaca que o texto é vago e abre o caminho para todos os excessos.
O general Aléssio Ribeiro Souto, que está por trás do programa de educação de Jair Bolsonaro, afirmou em entrevista ao jornal Estado de São Paulo no último mês de outubro, não ter a intenção de contrariar o ensino do criacionismo caso essa fosse a convicção dos pais. O militar também disse que pretende “eliminar os livros de história que não veiculem a verdade sobre [o golpe de Estado] de 1964”.
“O Brasil está sendo atacado por uma histeria coletiva. Como você quer ensinar ciências sociais sem falar de Marx? Ninguém questiona o fato de falar de Adam Smith ao falar de economia, por exemplo”, ressalta Rafael Mafei Rabelo, professor de direito na Universidade de São Paulo (USP). Le Monde lembra que no país, onde um estupro acontece, em média, a cada 10 minutos e onde há milhares de menores gravidas, a maioria dos professores estão convencidos da importância da educação sexual para os adolescentes.
Doutrinação via Facebook
Henrique Cunha, professor de sociologia em uma escola pública de São Paulo, contou ao Le Monde que foi convocado pelo diretor do estabelecimento onde trabalha, pouco tempo após a vitória de Bolsonaro. Um pai havia reclamado que seu filho estava sendo “doutrinado”. O professor foi criticado por comentar um post no Facebook do aluno. “Sempre comento. Não julgo, mas tento argumentar, iniciar um debate com os alunos”, justifica Cunha.
Vários professores de todas as disciplinas, afirmam que há algumas semanas vêm sofrendo retaliações de pais e também de suas hierarquias. “Todos os dias, preciso verificar acusações. Há uma verdadeira desconfiança. Esse texto dá voz ao obscurantismo, não vivemos mais no mesmo país! ”, lamenta Raquel Dias Araújo, do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes).
Lavagem cerebral
“A ideia de que escolas estivessem fazendo uma lavagem cerebral com tendências marxistas não vem somente de alguns fanáticos de Bolsonaro”, afirma Le Monde. O jornal conversou com Eduardo Wolf, formado em filosofia pela USP e jornalista do caderno cultural do Estado de São Paulo, que em 2016 escreveu: “existem pessoas nos comitês burocráticos ministeriais que querem excluir do ensino temas relacionados à Grécia antiga ou à Renascença italiana para dar mais destaque ao chavismo venezuelano como um episódio da luta dos pobres contra os ricos no mundo capitalista”. Agora, ele voltou a afirmar ao Le Monde que ainda “existe no Brasil um grande problema relacionado aos livros de história que trazem uma visão idealizada do regime de Fidel Castro ou de Hugo Chávez”.
No entanto, o jornal francês destaca que as críticas de Eduardo Wolf não fazem dele um defensor do texto da “escola sem partido”. “Deveríamos repensar nossa forma de ensinar. Em vez disso, temos um debate sobre um texto obscurantista. É muito grave”, ressalta Wolf, lembrando os resultados medíocres do sistema educacional brasileiro no ranking do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA).
“A escola, ou o que resta dela, deve ensinar a pensar, e não a como pensar. Sim, é preciso melhorar nossos métodos de ensino, mas esse texto é inconcebível”, afirmou João Batista Araujo e Oliveira, presidente do instituto Alfa e Beto, que defende um maior debate sobre a educação no Brasil.
Le Monde finaliza sua matéria ressaltando que o texto tem poucas chances de ser aplicado. O Supremo Tribunal Federal deve se opor ao seu conteúdo, que vai contra a liberdade de expressão. Mas com ou sem lei, a tensão cresce, influenciada por um Jair Bolsonaro prestes a privatizar de forma massiva o ensino e que defende que alunos possam filmar seus professores para facilitar o processo de delação.