O terrorismo institucional de Bolsonaro contra os índios

"Não há terra indígena sem proteção e preservação do meio ambiente. É mais uma das características que incomodam aqueles que querem a todo custo a destruição dos recursos naturais, uma vez que as terras indígenas são áreas de sobreposição ainda mais bem preservadas do que a maioria das reservas ambientais, representando uma reserva de saúde e bem-estar não apenas para os índios, mas para toda a população”.

Por Iracema de Alencar*

indigenas - Thiago Gomes / Fotos Públicas

Em mais um ataque lancinante (agora com o poder da caneta) contra os povos indígenas, o presidente Jair Bolsonaro publicou no Decreto nº 870/2019 duas decisões que feriram de morte a Fundação Nacional do Índio (Funai) e, portanto, a política indigenista brasileira. A primeira foi sua saída do Ministério da Justiça – onde permanecia desde sua fundação em 1967, em pleno regime militar – para o misterioso e ideologizado Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A segunda, no ato que retira da Funai a atribuição de demarcar as terras indígenas, repassando a responsabilidade para o Ministério da Agricultura, hoje sob comando de Tereza Cristina (DEM), conhecida deputada da bancada ruralista e líder da frente parlamentar da agropecuária em 2018.

A política fundiária é um dos alicerces da política indigenista. Destruído o processo demarcatório, se fragilizam ou se extinguem todas as demais políticas decorrentes, como as políticas de saúde, de etnodesenvolvimento e de monitoramento ambiental e territorial. A demarcação das terras indígenas contribui para a política de ordenamento fundiário do Governo Federal e dos Estados. Uma vez resolvida ou encaminhada a questão, previnem-se ou atenuam-se conflitos pois, com a segurança jurídica, o poder público passa a ter melhores condições de cumprir com suas atribuições constitucionais, com atenção para às especificidades dos grupos étnicos. A pasta que assume esse aspecto sensível da política indigenista fará prevalecer os interesses de grupos econômicos a quem não interessa negociação.

Não bastasse isso, Bolsonaro também transferiu do órgão indigenista para o Ministério da Agricultura a tarefa de licenciamento ambiental para os empreendimentos que impactam os povos indígenas. Não há terra indígena sem proteção e preservação do meio ambiente. É mais uma das características que incomodam aqueles que querem a todo custo a destruição dos recursos naturais, uma vez que as terras indígenas são áreas de sobreposição ainda mais bem preservadas do que a maioria das reservas ambientais, representando uma reserva de saúde e bem-estar não apenas para os índios, mas para toda a população.

Embora as condições ambientais tendam a piorar para toda a população no território brasileiro, é necessário observar que a manutenção de um modelo de avanço desenfreado das fronteiras do agronegócio é realizado principalmente em detrimento da exploração de áreas rurais e indígenas. Essa percepção de que a preservação desses territórios é um óbice levará à deterioração das condições de vida e à desapropriação de bens materiais intangíveis para as populações indígenas e camponesas, sob a justificativa do “interesse nacional” que, nesse caso, só se realiza na perspectiva do crescimento econômico das parcelas mais abastadas da elite rural.

As medidas eram esperadas, embora o atual presidente tenha utilizado suas técnicas de plantar uma informação e logo em seguida desmenti-la. Há por trás disso uma sofisticada engenharia político-jurídica. É óbvio que o governo não poderia simplesmente decretar o fim das demarcações, porque seria impedido pela Constituição. Sua estratégia é manter um simulacro da lei, transferindo a competência para um órgão que não deferirá nenhum processo demarcatório.

Mas o que é a lei sem efetivação? A Constituição de 1988 estabeleceu que as terras indígenas no Brasil fossem demarcadas em até cinco anos. Não foram. Todos os artifícios político-jurídicos forma utilizados para que hoje mais de 130 processos de demarcação permaneçam sob risco de parar. Outros 116 estão em estudo para aprovação como terra tradicionalmente ocupada, restando mais 484 áreas reivindicadas para análise. Isso sem falar em outras tantas aldeias que nem sequer tiveram o processo demarcatório iniciado.

O fato é que o ato unilateral e autoritário do atual governo também violou diversos direitos dos povos indígenas, contrariando flagrantemente o princípio internacionalmente consagrado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que preconiza a autodeterminação, o direito de participação e de consulta prévia, livre e informada sobre projetos e ações que afetam as condições de vida indígenas, sua liberdade de associação em defesa de seus interesses e direitos, sua integridade e vida. Suas medidas reforçam a discriminação e ferem o princípio de igualdade perante a lei.

A Convenção 169 da OIT resguarda os direitos culturais dos abusos econômicos contra os povos indígenas. Ela fornece mecanismos formais para resolver parcialmente o primeiro, mas nega a este último qualquer interferência danosa. A Convenção oferece um canal legal que permite a expressão atenuada de conflitos de interesses com o intuito de evitar confrontos étnicos violentos, seguindo os exemplos do México, Bolívia e Peru, países que em suas as reformas constitucionais passaram a reconhecer formalmente os povos indígenas como membros legítimos da nação dentro de suas demandas culturais e políticas.

Embora isso não signifique o fim dos problemas relativos àqueles povos, fazem o caminho oposto ao defendido pelo governo Bolsonaro, que é a eliminação física e cultural dos poucos índios que ainda sobram por aqui. O discurso do chefe de Estado é de “integrá-los à sociedade”, uma aberração retórica etnocêntrica que só as parcelas mais ignorantes e arrogantes da sociedade proferem.

O governo Bolsonaro é a materialização do despreparo e do autoritarismo ignorante. No mesmo dia em que prometeu se sujeitar à Constituição, não cumpriu suas obrigações de respeitar, proteger e cumprir o dever de tomar medidas de qualquer tipo necessárias para a realização dos direitos humanos e liberdades fundamentais da população, com especial atenção os povos indígenas, devido à sua condição estrutural de exclusão, marginalização e racismo em que vivem e os coloca em situação de maior vulnerabilidade diante do poder. Tudo o que se vê é a perseguição violenta, dissimulada e implacável contra os setores mais fragilizados da sociedade.

A reação do movimento indígena brasileiro tende a avançar além do quadro político local. Em diálogo com setores mais sensíveis das instituições internacionais, o problema indígena se impõe como agenda que pode até prejudicar economicamente o país, uma vez que mercados cada vez mais exigentes podem boicotar produtos do violento agronegócio brasileiro. Os indígenas não titubearão em ocupar os espaços que se abrem nos organismos e legislações internacionais. Diversas estratégias persistem em utilizar os meios oferecidos pela globalização da questão indígena. Em âmbito interno, associações indigenistas da Funai, como a Indigenistas Associados (INA), mostraram a apreensão com o destino do órgão, que definhará sem as suas principais atribuições históricas. É um ataque sem precedentes ao indigenismo brasileiro. Certamente será convertido em um drama humanitário de visibilidade internacional.

Bolsonaro cumpre, assim, uma de suas promessas de campanha, de que caso assumisse não haveria um centímetro a mais para demarcação das terras indígenas. Revela o explícito comprometimento com sua agenda antipopular e pró-mercado. É um recado muito claro de que o povo brasileiro não terá vez nesse governo.