Especialistas em segurança e Constituição detonam “pacote” de Moro
Anunciado com pompa nesta segunda-feira (4), o chamado “pacote anticrime” do governo Bolsonaro, elaborado pelo ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), decepcionou. Especialistas em segurança pública e constitucionalistas avaliam que as medidas apresentadas são insuficientes para ter impactos relevantes no combate à criminalidade. A pouca atenção dada à inteligência policial e a falta de coordenação entre órgãos de governo devem tornar mais difícil a redução nos índices de violência.
Publicado 05/02/2019 01:40
“Sem que as polícias tenham a capacidade de investigar os crimes, não dá para aplicar a lei”, diz Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé. Segundo Ilona, a taxa de esclarecimento de crimes violentos no Brasil fica em torno de 20%. Já as condenações caem para menos de 10%. Seria importante entender como as propostas conversarão com o Plano Nacional de Segurança Pública, lançado em 2017 pelo governo Temer e elogiado pelo próprio Moro.
Fernando Marcato, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito e sócio da GO Associados, afirma que o pacote apresenta um viés excessivamente “punitivista”, sem soluções mais claras. “Simplesmente jogar as pessoas na prisão não funciona. A gente fez isso até hoje e não resolveu”, diz. Marcato lembra que o número de presos no Brasil se aproxima dos 800 mil. “A discussão sobre encarceramento em massa não parece ser uma prioridade do Moro. Assim, fica difícil separar o joio do trigo.”
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) foi outra instituição a afirmar que o pacote deve ter impacto limitado sobre os indicadores de violência. “Medidas simples e objetivas não são suficientes para resolver os problemas complexos do setor”, diz o órgão em relatório. “Também não há clareza sobre ações dos governos estaduais e da União no enfrentamento da corrupção policial”, um dos aspectos que contribuem “para o surgimento de milícias.”
Ilona critica as mudanças no chamado excludente de ilicitude. Se aprovadas, essas alterações abrirão espaço para que uma pessoa que mate alguém até se livre da condenação, caso prove que estava no momento sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Para Ilona, “todas as propostas apresentadas vão na direção de fechar brechas da lei – mas essa abre”.
“Emoção é algo muito vago. Estamos abrindo espaço para a desproporcionalidade de reação”, agrega a diretora do Instituto Igarapé. Marcato frisa que o projeto “talvez precisasse de outras medidas, para ver se ele se sustenta. Senão vira uma coisa só de justiceiro”.
Inconstitucional
Pelo menos oito pontos do projeto, se transformados em lei pelo Congresso Nacional, podem ser objetos de impugnação no Supremo Tribunal Federal (STF). De acordo com especialistas, certos aspectos da proposta violam princípios previstos na Constituição – ou mesmo entendimentos já firmados anteriormente pela Corte.
Copiado do Direito norte-americano, o instrumento do “plea bargain” – em que o investigado confessa o crime e opta por um acordo com o Ministério Público para não ser processado – é visto com ressalvas por constitucionalista brasileiros. Isso porque a Constituição prevê o devido processo legal como um direito fundamental. “Quando você aceita a possibilidade de alguém ser sancionado antes do início do processo penal, você está anulando a existência desse direito”, afirma o criminalista e professor de Direito Penal Conrado Gontijo.
Outra modificação que pode ser questionada no Supremo é a possibilidade de executar a pena tão logo ocorra uma condenação por tribunal do júri (que julga crimes contra a vida, como homicídios), sem aguardar o julgamento de segunda instância. Para o advogado Marcelo Egreja Papa, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, a medida “é absolutamente inconstitucional”, pois viola duas garantias fundamentais de uma só vez: a presunção de inocência e o direito ao duplo grau de jurisdição.
Já o princípio da individualização da pena estaria sendo desrespeitado com a proposta de Moro de endurecer a progressão de penas para quem cometeu crimes hediondos, permitindo ao juiz que estipule um período mínimo de cumprimento em regime inicial fechado. Para o criminalista Ticiano Figueiredo, presidente do Instituto de Garantias Penais (IGP), este é um caso de “inconstitucionalidade flagrante”, uma vez que o próprio plenário do Supremo já vetou a medida, em julgamento ocorrido em 2012.
Outro aspecto do projeto que contraria entendimento do STF é o que prevê que a Fazenda Pública cobre multas fixadas a réus condenados em ações penais. Em dezembro do ano passado, a Corte decidiu por 7 a 2 que essas multas não podem ser tratadas como tributos – portanto, a competência da cobrança é, na verdade, do Ministério Público Federal (MPF).
O pacote anticrime de Moro também pode violar o princípio da igualdade ao permitir a isenção de pena a policiais que executarem alguém durante o serviço. Na visão de constitucionalistas, o fato de a lei trazer previsão específica para a categoria feriria o princípio clássico de que “todos são iguais perante a lei”.
O trecho do projeto que prevê a introdução do agente encoberto (um policial disfarçado que compra drogas para provar a existência de tráfico, por exemplo) afronta uma súmula da própria Corte, segundo a qual não há crime quando o flagrante é “arranjado”. Outro ponto controverso é o que permite gravações de atendimentos de advogados com seus clientes. Mesmo se as gravações forem autorizadas por decisão judicial fundamentada, a medida afronta artigo da Constituição segundo o qual o advogado é “inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão”.
Além disso, Moro propõe que os encontros de presos com seus advogados devam ser previamente agendados com a direção do presídio federal, mediante requerimento oral ou por escrito. “A possibilidade de se restringir a visita do advogado fere o princípio da ampla defesa”, defende o advogado Moroni Costa, responsável pela área penal empresarial do escritório Bichara Advogados.
Com informações do Valor Econômico