Leci Brandão: A negligência e os saudosos da escravidão

2019 começou difícil para o nosso povo. A negligência com a vida das pessoas deu o tom de nossas tragédias. Sobre cada uma delas já nos manifestamos, mas o nosso estarrecimento e profundo pesar continua.

trabalho_escravo

Neste fim de semana, mais um fato aconteceu. Ao contrário do que muitos podem pensar, ele tem tudo a ver com as tragédias que estamos vivendo porque também expressa negligência, desprezo e indiferença. Estou falando da festa temática que comemorou os 50 anos de uma socialaite, diretora da revista Vogue. A festança teve como tema o Brasil Colonial e Escravocrata. Viu-se mulheres negras vestidas de mucamas abanando convidadas e aniversariante, como se sinhazinhas fossem, objetos sagrados das religiões de matriz africana como acessórios e gente famosa usando a cultura negra pra animar a festa e compactuar com o racismo.

Mas, como todos estes fatos se relacionam?

Ora, quem vai se importar se milhares de jovens negros perderam a vida nas mãos de agentes do Estado se tem até pacote, que se diz anticrime, com termos pomposos como “excludente de ilicitude” para garantir a inocência prévia de quem dispara? Quem vai se indignar ao saber que a autoestima da juventude negra é destroçada dentro das escolas ao ser exposta a uma história que omite as contribuições econômicas, políticas e culturais do povo negro para a humanidade? Quem vai se indignar com falas racistas que tripudiam sobre a nossa fé e, por isso mesmo, são usadas para alavancar a audiência de reality shows e cultos religiosos na TV aberta? Quem vai conseguir enxergar o absurdo em existir um guia de atividades, aprovado pelo Ministério da Educação, em que professores são orientados a brincar de dividir alunos entre capitães do mato e escravos? Ou ainda relacionar o possível aumento de mortes de mulheres negras e pobres a partir da imposição de uma gravidez a qualquer custo? Neste sistema, algumas vidas importam e outras nem tanto. Eis o motivo de tanta negligência.

A festa de Donata Meirelles é simbólica e eloquente quanto à negação da cidadania para a população negra no Brasil. A elite tradicional do país se ressente de não mais ser dona dos nossos corpos. São inocentes “mal-entendidos” como este que explicam certa euforia diante da reforma trabalhista e dos encaminhamentos para a destruição da previdência pública, reformas que vão fazer a população, em especial a pobre e negra, trabalhar até morrer. Ao colocar a nossa história, a nossa liturgia e a nossa dor como tema de festa, essa gente está mais uma vez tentando nos objetificar para continuar dominando e dispondo de nossas existências como bem entender. Se não mais como homens e mulheres escravizados, agora como mão de obra barata, sem formação educacional e que deve ser capaz de trabalhar até a morte sem direitos, Justiça do Trabalho ou previdência digna.

Após a repercussão negativa da festa, um pedido de desculpas foi improvisado para o caso de ter causado “impressão diferente”. Não, Donata, toda a festança não causou impressão diferente. A cenografia, o figurino e a encenação foram racistas na mesma medida em que revistas como as que você dirige vêm sendo racistas desde sempre e têm usado nossos corpos apenas como objetos para destacar a pretensa superioridade de uma elite branca. Já passou da hora de a sociedade aprender que racismo não se resolve com pedido de desculpas. Que se cumpram as leis afinal, já que, segundo o novo Ministro da Justiça, elas “valem para todos”.

Pedir desculpas não resolve. Dizer que foi mal entendido, também não. Difícil crer que a diretora de uma revista internacional não saiba, ou pelo menos desconfie, que esse tipo de postura reforça estereótipos que desumanizam a população negra e pobre. Quando isso acontece, todo tipo de violência contra essa população é autorizada e legitimada, seja a violência simbólica ou a morte física.

Os saudosos da escravidão no Brasil foram empoderados nas últimas eleições. Eles sempre estiveram presentes e atuantes, mas agora têm nas mãos poder político e econômico enormes. Estão à vontade para cometer “mal-entendidos”. A luta progressista precisa ser travada com a perspectiva histórica de que a escravidão no Brasil é parte constitutiva da identidade da elite brasileira, sendo tais episódios reflexos de uma mentalidade escravocrata, maquiada pela ideia de um povo ‘cordial’, que ignora a si mesmo por ser vítima da interdição histórica de um debate profundo sobre nossas raízes, identidades e diversidade. Mas, dessa vez, estaremos aqui para garantir que esse debate aconteça.