Um Itamaraty rendido

Política externa do Brasil abre as portas do país para os interesses da Casa Branca. 

Por Osvaldo Bertolino

Trump

A crise no Itamaraty vai muito além do inegável despreparo do chanceler Ernesto Araújo. Ele é uma figura subqualificada para o posto, portador de uma ideológica que mescla primarismo político com moralidade fundamentalista, mas o determinante é a política de alinhamento com os Estados Unidos, com previsíveis prejuízos para a economia brasileira. Os interesse norte-americanos no Brasil obedecem a uma política de Estado, fazem parte de uma espécie da redivisão internacional do trabalho.

As empresas norte-americanas fora dos Estados Unidos já vendem algo próximo de 1 trilhão de dólares por ano. Isso é quatro vezes mais que toda a receita de exportação dos Estados Unidos e sete vezes mais do que todo o déficit comercial norte-americano. A América Latina sob a égide da política da Casa Branca seria o paraíso para essas empresas. Não à toa os Estados Unidos criticaram reiteradamente a política externa dos países que enveredaram pela via progressista na região, especialmente o que chamaram de limites ao fluxo de importações e exportações.

Quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou à Presidência da República, uma de suas primeiras ações foi a de desmontar a trama criada pelo governo anterior para a adoção da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Esse foi um dos principais motivos do fel que os conservadores destilaram contra as lideranças do Itamaraty da época. Quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) deixou Brasília, o Brasil respondia por apenas 18% das exportações latino-americanas.

Carta de Lula

O Brasil era um exportador acanhado devido ao imaginário, agora de volta, de que o mercado externo se reduz aos Estados Unidos e à Europa. Empresa brasileira molhando os pés em águas internacionais do Sul do planeta é uma imagem que jamais frequentou o pensamento dessa ideologia. Para os neoliberais, a ideia de que o Brasil deve fincar sua bandeira em outras terras soa exótica.

Quando a política externa do governo Lula chegou, o Brasil logo mostrou como desataria o nó da política comercial brasileira, responsável por seguidos déficits desde a implantação do “Plano Real”: o governo sairia pelo mundo, disputando terreno em vários mercados. Para os novos líderes do Itamaraty, eventuais perdas em uma trincheira mundo afora seriam compensadas por ganhos em outra.

Em agosto de 2002, Lula, ainda candidato à Presidência da República, entregou uma carta a FHC, durante o encontro com os candidatos no Palácio do Planalto, em Brasília, na qual disse que era urgente “gerar um elevado superávit comercial, fundado no aumento expressivo das exportações, de modo a diminuir a vulnerabilidade do país com relação à volátil liquidez internacional”.

“Isso requer, de imediato, uma ampla ofensiva diplomática, que mobilize todas as embaixadas e consulados brasileiros para apoiar o esforço exportador do Brasil. Exige, além do mais, uma ação decidida nas frentes de negociação internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), contra o protecionismo injustificado e os subsídios indevidos dos países ricos que prejudicam as vendas de nossos produtos, como o suco de laranja, o açúcar, a soja e o aço, entre outros”, dizia a carta.

América do Sul estável

Na sua posse, Lula disse que, “em relação à Alca, nos entendimentos entre o Mercosul e a União Europeia, na OMC o Brasil combaterá o protecionismo, lutará pela sua eliminação e tratará de obter regras mais justas e adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento”.

“Buscaremos eliminar os escandalosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos que prejudicam os nossos produtores privando-os de suas vantagens comparativas. Com igual empenho, esforçaremo-nos para remover os injustificáveis obstáculos às exportações de produtos industriais. Essencial em todos esses foros é preservar os espaços de flexibilidade para nossas políticas de desenvolvimento nos campos social e regional, de meio ambiente, agrícola, industrial e tecnológico”, afirmou.

Lula disse ainda que a grande prioridade da política externa do seu governo seria “a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social”. “Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da integração. O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados”, disse o presidente.

Lula disse com palavras claras que priorizaria as relações com os países vizinhos. “Cuidaremos também das dimensões social, cultural e científico-tecnológica do processo de integração. Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um vivo intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americanos. Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem hoje situações difíceis. Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada país”, afirmou.

Multipolaridade internacional

O presidente também falou das relações de seu governo com os Estados Unidos e a União Europeia. “Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a cooperação com a União Europeia e os seus Estados-Membros, bem como com outros importantes países desenvolvidos, a exemplo do Japão”, disse.

Mas ressaltou que não deixaria de dar atenção a outras regiões do planeta. “Aprofundaremos as relações com grandes nações em desenvolvimento: a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, entre outros. Reafirmamos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes potencialidades”, afirmou Lula.

O discurso reforçou o aspecto político das novas relações internacionais do Brasil. “Visamos não só a explorar os benefícios potenciais de um maior intercâmbio econômico e de uma presença maior do Brasil no mercado internacional, mas também a estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida internacional contemporânea. A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado”, disse o presidente.

Práticas de gangsterismo

Com essa política, o Brasil ajudou a despachar o conservadorismo sul-americano, no que diz respeito a políticas externas — com expressões de pesar e desapontamento manifestadas pela mídia —, para a vala comum onde jazem as carcomidas ideias neoliberais. A maior parte do encanto com o neoliberalismo já havia se desfeito, moído por índices vergonhosos de injustiças sociais, pela violência, pela inépcia geral da administração e pelo que existe de pior na política.

Com o tenebroso desfile público das práticas de gangsterismo que se sucederam em volta desses governos, os povos da região deram demonstrações de não querem mais ver seus países no balaio geral de roubalheira, irresponsabilidade e primitivismo que marcaram as políticas neoliberais. São práticas que fizeram seus defensores perderem o odor de santidade com o qual se apresentavam ao público.

Mas a verdadeira marca da maldade está impressa no DNA ideológico dessa gente. Infelizmente, a democracia do jeito que ela é entendida e praticada atualmente em boa parte do mundo abre as portas para todo tipo de aventureiro ou impostor que queira se aproveitar dela para impor seus desatinos. O resultado de tantas deformações é que os neoliberais acham que a vida pública deve ser apenas uma vasta operação comercial. É o sistema que gera essa gente, da mesma maneira que a água parada gera o mosquito da dengue.