Tragédia no Rio Bravo — a fotografia de um pesadelo

A foto. Valeria e Oscar, pai e filha, migrantes, salvadorenhos, corpos afogados no rio Bravo. E o disparo da máquina de Julia Le Duc – impulsivo, rápido, onda de choque que destapou um cenário de “miséria, abandono e desespero que acompanha os migrantes”, descreve a jornalista mexicana em conversa com o Expresso. O futuro dos migrantes que passam pelo México é incerto. E Julia Le Duc conta estar lá, sempre, para contar as suas histórias.

Pedro Cardoso, no México – jornal Expresso (Portugal)

Julia Le Duc

Só ontem à noite Julia Le Duc soube que o Papa Francisco “ficou muito triste com a fotografia” dos migrantes no Rio Bravo. E que Trump lançou um “Odeio-a!”, quando os jornalistas o confrontaram com a imagem que a repórter mexicana captou. “Espero que sirva para mudar alguma coisa…”, diz, vagamente, como quem pensa em voz alta.

A voz de Julia Le Duc é rouca. Fala com uma velocidade impressionante, com o tom característico do norte do México, “cantadito”. Está cansada, são 10 da noite no México e “só agora” está “a almoçar”. Andou “numa correria” o dia todo a acompanhar a entrega dos corpos dos salvadorenhos, pai e filha. “Estão a ser embalsamados. Vão levá-los para a cidade de Monterrey e daí vão ser trasladados para El Salvador”. A viagem está prevista para hoje, quinta-feira. Tania, a única sobrevivente da família de migrantes, também regressa ao país centro-americano. “Não imagino o difícil que vai ser para ela. Vai viajar com os caixões do marido e a filha no porão”, lamenta a jornalista.

Em Alta Vista, em El Salvador, a família de Oscar, Vanesa e Tania aguarda. O Expresso ligou para a casa dos Martínez. Do outro lado da linha, uma familiar foi firme: “Neste momento os pais do Oscar não se sentem bem e não podem falar”. Não insistimos.

Numa reportagem da televisão salvadorenha, Canal 33, Rosa Ramírez conta como tentou dissuadir o filho Oscar de fazer a viagem. “Uma mãe não quer que os filhos estejam tão longe, mas eles meteram essa ideia de querer ir”. “Eles viviam aqui comigo”, continua, “e queriam ter uma casa para eles, isso foi o que os motivou”. Abraça um macaco de peluche vermelho e branco, que a neta de dois anos deixou para trás, e desfaz-se em pranto. Ao lado, José Martinez, pai de Oscar, aprofunda ainda mais a dor: “Quando a pequenita viu que já estava a ser arrastada pela corrente, começou a dizer adeus com as mãozinhas à mãe, que estava a gritar por eles”.

COLAPSO

A imagem é forte, como forte é “o cenário que vemos todos os dias nas margens do Rio Bravo”, comenta Julia Le Duc. “A fronteira colapsou. Do sul, chegam a Matamoros milhares de migrantes de El Salvador, Cuba, Honduras, Guatemala, Nicarágua, para pedir asilo aos Estados Unidos; do norte, chegam cada vez mais deportados, a quem Trump diz ‘adeus’ e abandona no meio da ponte entre os dois países, muitas vezes sem um tostão no bolso”.

Com “um único albergue na cidade, e sem condições”, não têm onde ficar. “Juntam-se ao lado da ponte internacional, na mais absoluta miséria, totalmente abandonados pelo governo mexicano que não lhes dá nenhum apoio”. Neste acampamento improvisado, relata, “milhares de homens, mulheres, crianças e bebés usam o rio como chuveiro e casa-de-banho”. E

esperam, esperam, e esperam… “Hoje falei com um cubano que tirou uma senha para pedir asilo nos Estados Unidos. Era o número 2084! Imagina quanto vai ter de esperar”.

A lentidão de resposta das autoridades migratórias norte-americanas e as condições insalubres do lado mexicano são o detonador de “decisões precipitadas” como as que acabaram com o sonho e a vida da família Martinez, considera a jornalista. “Não os podemos julgar, não sabemos em que circunstâncias estas pessoas chegam aqui, nem os perigos que tiveram de passar. E ao chegar a este lugar e ver este cenário desalentador, facilmente se desesperam”, comenta.

A CRUZ DO MIGRANTE

No lado mexicano do Rio Bravo, há uma “Cruz do Migrante”. “É um marco que recorda todas as pessoas que morreram ao tentar cruzar o rio”. Os corpos de Oscar e da filha, Vanesa, foram encontrados a poucos metros deste monumento-lápide.

Segundo as autoridades norte-americanas, 283 migrantes morreram em 2018 ao tentar cruzar a fronteira. Já este ano, pelo menos 12 pessoas foram encontradas mortas no Texas. Vítimas, sobretudo, de desidratação e sede. Sucumbiram às altas temperaturas da região árida.

Os números são “altos”, mas “não correspondem à totalidade das mortes de migrantes”, considera Fernanda Rivero, da organização mexicana “Sem Fronteiras”. “A maioria das mortes não é reportada, e é difícil detetá-las, porque muitos migrantes passam por zonas sem vigilância”.

Fernanda Rivero realça também que não basta olhar para a fronteira. É necessário, defende, “ter em conta as mortes que ocorrem nos centros de detenção”. “Nos últimos cinco meses, documentamos o falecimento de uma criança migrante num centro do Instituto Nacional Mexicano e de quatro menores que estavam sob custódia da Guarda Fronteiriça dos Estados Unidos”, exemplifica.

Com a fotografia do pai e filha salvadorenhos de Julia Le Duc no centro de discussão política nos Estados Unidos, e denúncias recentes sobre condições deploráveis de centros de detenção de migrantes no Texas, ontem o Congresso norte-americano aprovou um fundo de 4,5 milhões de dólares para melhorar o atendimento aos migrantes na fronteira sul.

Entretanto, há um novo perigo iminente, alertam em uníssono vários especialistas internacionais: a militarização da fronteira sul e norte do México, condição expressa dos Estados Unidos para impedir uma guerra comercial com o vizinho do sul. “Esta medida vai forçar as pessoas a procurar outras rotas muito mais arriscadas”, considera Gustavo Gatica. Em conversa com o Expresso, o especialista em temas migratórios da Universidade Estatal Distancia, na Costa Rica, assegura que a nova política migratória mexicana “vai aumentar a vulnerabilidade dos migrantes, expondo-os muito mais às redes criminosas mexicanas, como os grupos de narcotráfico, por exemplo, que há muito se converteram também em redes de extorsão e sequestro de migrantes”.

Com um futuro incerto onde espera “não ter de retratar mais mortes”, Julia Le Duc abre o baú de fotografias – outras, menos trágicas, igualmente tristes – que a marcaram nos últimos 15 anos como jornalista. “Há uma que me comove muito. Tirei-a no albergue da Diocese de Matamoros, onde há uma Virgem da Guadalupe muito grande. Sempre que chegam a esse lugar, os migrantes benzem-se, ajoelham-se e encomendam os filhos pequenitos à ‘Virgencita’. É um gesto simbólico, ao mesmo tempo bonito e profundamente triste.”