Rangel: FHC, Lula, Dilma e Temer trataram Ancine como órgão de Estado

O cineasta Manoel Rangel diz que o Estado “deve se manter longe da escolha de temas, conteúdos e abordagens das obras audiovisuais”. Membro do Comitê Central do PCdoB, Rangel foi presidente da Ancine (Agência Nacional do Cinema) de 2006 a 2017. Em entrevista à Folha de S.Paulo, concedida na segunda-feira (22), Rangel criticou a ameaça do presidente Jair Bolsonaro (PSL) de extinguir a agência caso não seja possível usar filtros na aprovação de produções nacionais. Confira.

Manoel Rangel

Folha de S.Paulo: O presidente Jair Bolsonaro falou sobre impor um filtro ao financiamento de filmes brasileiros e extinguir a Ancine. Qual o impacto dessas medidas?
Manoel Rangel: Estamos vivendo um momento em que não dá para se levar em conta tudo o que é dito. As coisas são ditas sem se pensar e se refletir sobre elas. São palavras ao vento na maior parte das vezes. Mas, de toda maneira, a Constituição brasileira proíbe a censura e determina o estímulo à produção audiovisual brasileira geral e independente. O Estado deve se manter longe da escolha de temas, conteúdos, abordagens das obras audiovisuais. Essa decisão pertence à sociedade. Ela define o que quer e o que não quer ver, o que faz sucesso e o que não faz.

Folha de S.Paulo: Qual foi a influência da Ancine para o audiovisual?
MR: O setor mudou drasticamente desde a criação da Ancine – para melhor. O Brasil faturou na economia audiovisual em 2007 cerca de R$ 8,5 bilhões; em 2014, foram R$ 24,5 bilhões – o que representou 0,46% [do PIB]. É equivalente à indústria do papel, à indústria têxtil, à farmacêutica, o que dá o tamanho da expressão do audiovisual na economia brasileira. No momento de criação da Ancine, em 2001, o Brasil tinha pouco mais de 1.800 salas de cinema. Em 2018, chegou a mais de 3.400.

Folha de S.Paulo: Qual é o cenário hoje?
MR: Enquanto a economia do Brasil patina desde 2015, o setor audiovisual não parou de crescer, crescendo cerca de 8% ao ano. O que mantém isso aquecido? O trabalho dos empreendedores, criadores, realizadores – mas também a atividade da Ancine, da política pública de cinema e audiovisual, mesmo no momento em que a agência vive uma crise de gestão.

Folha de S.Paulo: O sr. esteve à frente da Ancine de 2006 a 2017. Nesse período, houve algum tipo de filtro?
MR: Em nenhum momento, durante toda a minha gestão, de dezembro de 2006 a maio de 2017, houve nenhuma orientação, pressão ou pedido por filtro na aprovação de projetos. Ao longo desse período, a Ancine aprovou projetos muito díspares entre si, como Bruna Surfistinha e Maria, A Mãe do Filho de Deus, como Nosso Lar, de orientação espírita, e de puro entretenimento e elogio à atuação policial, como é o Tropa de Elite (1 e 2), de elogios à operação Lava Jato, como o A Lei É Para Todos, e Real – O Plano Por Trás da História. A Ancine sempre viu a diversidade de conteúdos, a pluralidade temática, de gênero e de olhares como fator de riqueza da cultura e da sociedade brasileira. É claro que sempre há um ou outro setor que critica. A Ancine responde dizendo que não aprova obras pornográficas, de proselitismo político e de orientação publicitária.

Folha de S.Paulo: Bolsonaro diz que Ancine foi aparelhada pela esquerda e por isso haveria viés ideológico na seleção de projetos. Houve esse aparelhamento?
MR: É uma polêmica falsa. A Ancine foi tratada como órgão de Estado tanto pelo presidente Lula, quanto pelos presidentes Fernando Henrique, que propôs sua criação, Dilma e Michel Temer. Durante os 17 anos da sua existência, com muito esforço, o governo a estruturou e a fortaleceu para que pudesse cumprir sua missão constitucional e legal de regular o mercado audiovisual e estimular a produção de filmes e séries brasileiras plurais e diversos. Basta ver os diversos tipos de filmes que receberam apoio ao longo dos anos sem qualquer viés ideológico. Foram realizados concursos públicos e o quadro da agência é praticamente todo composto por servidores estáveis e qualificados.

Folha de S.Paulo: O governo deve mexer no Fundo Setorial do Audiovisual. Como vê isso?
MR: Não acredito em fantasmas e acho que quem morre de véspera é peru. Eu gastaria menos energia com especulações e suposições. Elas acabam consumindo muita energia do governo e das pessoas que fazem o Brasil funcionar. A atividade audiovisual é pujante, tem dado grandes contribuições tanto culturais como econômicas ao País. Nossos filmes continuam mobilizando milhões de brasileiros nas salas de cinema. O Brasil cresceu em prestígio no mundo através de seus filmes e suas séries. É nisso que o governo deveria estar atento. O governo deveria estar mais preocupado em estimular o crescimento do setor, que tem crescido a despeito da inoperância do governo, do que gerar especulações.

Folha de S.Paulo: O produtor Luiz Carlos Barreto disse ao jornal O Globo que nem na época da ditadura houve filtro como defende Bolsonaro.
MR: O Barreto disse a verdade. O melhor filtro quem faz é o cidadão tomando a sua decisão de assistir este ou aquele filme, esta ou aquela série. Esse é o único filtro que uma democracia pode admitir. Democracias não admitem censuras.