Trinta anos do SUS: Uma obra inacabada ou uma obra subvertida?

Fazem 30 anos da proclamação da Constituição Federal (1988 – 2018). A CF no seu artigo 196 define que a saúde é um direito de todos, dever do Estado e deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas. Após longos 30 anos é possível fazer um balanço, com poucas possibilidades de erro, que a saúde pública brasileira atual está bem distante de cumprir a determinação constitucional.

SUS

Por Roberto Bittencourt e Luciano de Paula Camilo

Fazem 30 anos da proclamação da Constituição Federal (1988 – 2018).
A CF no seu artigo 196 define que a saúde é um direito de todos, dever do Estado e deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas. Após longos 30 anos é possível fazer um balanço, com poucas possibilidades de erro, que a saúde pública brasileira atual está bem distante de cumprir a determinação constitucional. As pesquisas de opinião pública recentes colocam a saúde como principal problema da população, a frente da corrupção e da segurança pública.

O Sistema Único de Saúde (SUS) encarregado de efetivar o preceito constitucional não é único, nem é o principal sistema de saúde em desenvolvimento no país. O Brasil gasta próximo de 9% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em saúde, cerca de 55% desses gastos são privados (plano de saú‑ de ou gastos do próprio bolso) e 45% são gastos públicos. O artigo
199 da CF define que a instituições privadas sem fins lucrativos, preferencialmente,participam de forma complementar ao sistema pú‑ blico. O que verificamos hoje no Brasil é exatamente o contrário.

Os 30% dos brasileiros que utilizam planos de saúde tem a sua dis‑ posição mais recursos do que os 70% dos brasileiros que utilizam o SUS. O atual modelo de saúde brasileiro é um modelo misto, entre privado e público, com predomínio privado com fins lucrativos, em muito semelhante ao modelo de saúde norte americano.

Podem haver dúvidas e debates sobre se a iniciativa privada é mais efetiva e mais eficiente do que a iniciativa pública em alguns setores da economia, como energia, telecomunicações, defesa ou outros, mas as evidências científicas mundiais são categóricas e definitivas em afirmar que no setor saúde, a iniciativa pública é mais efetiva e mais eficiente do que a privada. Outrossim, verificou‑se, recentemente, que nos EUA a saúde é inflacionária e avança sobre os salários (2018).

Comparando três indicadores estratégicos entre dois países ícones na saúde pública e na saú‑ de privada: Expectativa de vida (Reino Unido = 81,2 ; EUA = 79,3); Mortalidade Infantil (Reino Unido = 4,2 / 100 mil ; EUA = 6,5 / 100 mil); Mortalidade Materna (Reino Unido = 9 / 100 mil, EUA = 14 / 100 mil). Sendo que os EUA gasta em saúde 17,9% do PIB, porém apenas 46,4% são gastos públicos. Já o Reino Unido gasta em saúde 9,4% do PIB, quase a metade, porém 82,5% são gastos públicos (OMS, 2016). Conclui‑se que o sistema de saúde do Reino Unido é mais efetivo e eficiente do que o sistema de saúde dos EUA.

Em estudo recente publicado na revista Lancet (2017), após pesquisar em mais de 180 países, por 20 anos, revela três estágios evolutivos em termos de sistemas de saúde. Estágio I: predomí‑ nio do setor privado, em especial o pagamento do próprio bolso; Estágio II: equilíbrio entre o setor privado e o setor público; Estágio III (mais avançado): predomínio do setor público. Esclarece que quanto mais desenvolvido econo‑ micamente é o país, maior é o predomínio do setor público no sistema de saúde. A evidência é tão marcante que os países centrais com maior desenvolvimento econômico adotam o sistema público universal de saúde, independente se o governo é conservador ou progressista. Ou seja, independe se o partido no governo é de esquerda ou de direita.

No caso brasileiro percebe‑se o inverso. Desde a proclamação da Constituição Federal já governaram o país sete Presidentes da Repú‑ blica, de variados matizes políticos e, nenhum implantou de fato o SUS CONSTITUCIONAL.

A situação de saúde dos brasileiros se deteriora, progressivamente, de maneira inequívoca. As doenças transmissíveis como febre amarela, sarampo e outras ressurgem. As doenças crônicas degenerativas seguem sem controle adequado, agudizam e a assistência a população continua concentrada nos hospitais superlotados. Segundo o Conselho Federal de Medicina existem 900 mil cirurgias eletivas em fila, aguardando há anos para serem realizadas. São pacientes com cálculos na vesícula biliar esperando há mais de 5 anos, tendo crises de cólicas frequentes, são mulheres com miomas uterinos em sangramen‑ to evoluindo com anemia grave, são idosos com catarata perdendo qualidade de vida de forma irrecuperável.

A solução é clara.

Praticamente, existe unanimidade nos principais centros formuladores de política de saúde no Brasil, de que é preciso reverter o subfinancia‑ mento original e crônico do SUS. Como faze‑lo? Para começar, duas medidas:

Em primeiro lugar há que reverter a EC 95/2016 que congela os gastos públicos primários, incluindo a saúde, até 2036. Trata‑se de tentativa equivocada para reverter o déficit público brasileiro. Sabe‑se que o déficit público brasileiro tem como principal responsável o déficit nominal e não o déficit primário. Ou seja, o pagamento de juros da dívida pública, de aproximadamente 400 bilhões de reais / ano, do Orçamento Federal da ordem de 2,5 trilhões de reais (2016) é o verdadeiro responsável pelo desequilíbrio fiscal. Não custa recordar que a Constituição Federal, na sua versão original, colocava teto nos gastos com o pagamento de juros, 12% / ano, ao invés de teto para as despesas com as políticas sociais.

Em segundo lugar, suspender a Desvinculação das Receitas da União (DRU), que retira 30% das receitas da Seguridade Social, para pagar as despesas com a dívida pública. As duas medidas apontadas permitiriam dobrar o orçamento federal da saúde, que hoje é cerca de 100 bilhões de reais ano, apenas 3,9% do orçamento.

Onde aplicar os novos recursos para a saúde pública? O debate também é intenso e existem algumas iniciativas estratégicas. De imediato, propomos a criação do Serviço Nacional de Saúde do SUS, com objetivo de FEDERALIZAR a Atenção Primária à Saúde e, reestrutura‑la definitivamente. Precisamos de fato, transformar as Unidades Bá‑ sicas de Saúde (UBS) no centro de gravidade de todo o sistema de saúde brasileiro.

As Unidades Básicas de Saúde estão onde a população vive e trabalha, gerando grande capilaridade assistencial. O objetivo é colocar as Unidades Básicas de Saúde para funcionar plenamente, de maneira resolutiva, durante 18 ou 24 horas por dia, com equipes multiprofissionais de saúde mental, saúde bucal e saúde da família, além da presença regular de especialistas, estabelecendo protocolos clínicos – operacionais. Ademais e, importantíssimo, garantir nas UBS a realização de exames complementares e assistência farmacêutica plena.

Transformar as Unidades Básicas de Saúde em unidades sentinelas, com duas portas: para os pacientes com doenças crônicas, passíveis de controle clínico através das Equipes da Saúde da Família ou das Equipes da Atenção Domiciliar e, outra para os pacientes agudos, em sistema de plantão, aberta de 18 a 24 horas, seria o ponto de partida para, sequencialmente, integra‑los em rede, com os demais pontos de atenção e, linhas de cuidados bem definidas, permitindo assim que os hospitais, esvaziados, se concentrassem nas atividades cirúrgicas ou de maior gravidade.
Não precisamos reinventar a roda. Não somos o primeiro país a definir na Constituição Federal que os nossos cidadãos devem ter direito a saúde.

pública, gratuita, de qualidade e universal, porém não podemos esperar mais 30 anos para conquis‑ tá‑la de fato.

REFERÊNCIAS

1.http://dx.doi.or/10.1016/S0140‑6736(17)30874‑7. Publicado online 19 de abril de 2017. www.thelan‑ cet.com

2. http://www.marketwath.com/story/the‑ridden‑ways‑
‑rising‑health‑care‑cost‑affect‑you‑2018‑10‑10

3. WHO. World Health Statistics 2016: monito‑ ring health for Sustainable Development Goals. Geneve.2016

Roberto Bittencourt é Médico cardiologista, Pós Doutor em Economia e Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP / Fiocruz – RJ) e pela Summer School on Latin American Economies da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), Chile; Doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/ Fiocruz ‑ RJ), na área de concentração em Planejamento e Gestão, Editor Científico da Revista CCS

Luciano de Paula Camilo é Enfermeiro clínico, Doutorando em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília (UnB), Mestre em Educação para Profissões de Saúde (MHPE) pela Universidade de Maastricht, Holanda, Editor Executivo da Revista CCS