A Volta da Censura

 Série de medidas busca erodir o poder diretivo da Ancine

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 Os últimos dias têm sido de muita informação e contrainformação acerca
das intervenções do governo federal no setor audiovisual. A recente
publicação do decreto 9.919 ocorre poucos dias após a revogação do ato que
indicava membro da CGU para a diretoria da Agência Nacional do
Cinema (Ancine)(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/07/bolsonaro-quer-tomar-o-controle-dedinheiro-da-ancine-em-flerte-com-censura.shtml), autarquia especial que regula e fomenta o
setor audiovisual no país.
As diversas manifestações (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2019/07/mais-de-800-
membros-da-classe-artistica-assinam-carta-contra-ideia-de-filtros-na-ancine.shtml
)de diretores, artistas,
produtores, roteiristas e técnicos do setor, bem como a grande repercussão
nas redes sociais e na imprensa, têm razão de ser.
O decreto traz mudanças no Conselho Superior do Cinema (CSC). Transfere
sua vinculação do Ministério da Cidadania para a Casa Civil, reduz
drasticamente o número de participantes da indústria e da sociedade civil e
extingue a possibilidade de comitês na operacionalização dos trabalhos do
CSC.

A vinculação, em si, não apresenta maiores questões, já que inicialmente o
CSC esteve ligado à Casa Civil. Quanto ao número de participantes, chama a
atenção o objetivo de diminuir a representação da indústria audiovisual e da
sociedade civil, que passam a ser menores que a participação ministerial.
Ressalta-se que, caso se ambicione um conselho que equilibre interesses
sociais e do governo para o setor, o coerente seria uma composição paritária.
O que se vê é o esvaziamento do conselho, com o desprezo da capacidade de
contribuição dos efetivos atores da cadeia produtiva nas macropolíticas do
setor.
No tocante aos comitês não há grandes preocupações, pois garantidos estão
os grupos de trabalho, necessários para os debates técnicos, sobre os quais o
conselho deve se debruçar, como tem feito ao longo dos últimos 16 anos.
Além disso, foi anunciado (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/07/porta-voz-da-presidencia-dizque-governo-estuda-tirar-gestao-de-fundo-da-ancine.shtml) pelo porta-voz da Presidência da República que estão sendo realizados estudos com o intuito de transferir o
comitê gestor do Fundo Setorial do Audiovisual da Ancine
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/07/bolsonaro-diz-que-vai-extinguir-ancine-se-agencia-nao-puder-terfiltro.shtml)para a Secretaria Especial da Cultura, do Ministério da Cidadania. Tal
decisão, no presente contexto, soma-se ao leque de medidas no sentido de
erodir o poder diretivo da autarquia especial e de estabelecer influência do
governo federal sobre a alocação de incentivo aos projetos que se enquadrem
em condições específicas. Decerto, a Ancine dispõe das melhores condições
técnico-operacionais para lidar com o órgão, que esteve sob sua
responsabilidade desde o princípio.
A Constituição afasta a incidência de qualquer tipo de censura no país
quando delimita que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” e ao
situar, no capítulo de comunicação social, que “é vedada toda e qualquer
censura de natureza política, ideológica e artística”.
O poder constituinte, ciente da pactuação histórica social do país e
consoante com as constituições das democracias centrais e modernas, foi
categórico ao vedar qualquer tipo de censura e discriminação de conteúdo.
O possível controle de conteúdo de quaisquer manifestações artístico
culturais tem sido caro às democracias modernas. E no Brasil também. As
construções de políticas públicas respeitam a livre manifestação de
pensamento e expressão. Vejamos a classificação indicativa etária, objeto de
polêmicas recorrentes, que tem por baliza a classificação por idade conforme
os “standards” internacionais de linguagem.
A Ancine observa a viabilidade técnica e negocial da obra audiovisual,
quando da aprovação dos projetos. A Secretaria do Audiovisual observa os
critérios orçamentários e temáticos dos editais.
O direito à liberdade de expressão e às livres manifestações culturais está
amparado pela Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das
Expressões Culturais da Unesco, internalizada na legislação pátria desde
2006. Esse sistema de pesos e contrapesos ergueu importantes parâmetros e atraiu
montantes significativos de recursos para o setor nos últimos anos, sendo
certo que este movimenta a monta de R$ 25 bilhões por ano e emprega cerca
de 335 mil profissionais direta e indiretamente.
Os filmes brasileiros têm marcado presença significativa em festivais
internacionais de cinema como o de Sundance, Rotterdam, Berlim e Cannes
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/05/com-forte-presenca-em-cannes-brasil-conquista-vitorias-ineditas.shtml),
laureando recentemente obras como “Bacurau”
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/05/kleber-mendonca-filho-e-juliano-dornelles-mandam-recado-a-bolsonarocom-bacurau.shtml), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e “A vida
Invisível de Eurídice Gusmão”(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/05/brasileiro-karim-ainouzleva-premio-da-mostra-um-certo-olhar-em-cannes.shtml), de Karim Aïnouz.
Após o ciclo virtuoso da última década, o qual foi erigido por meio de amplo
debate no setor, no Congresso e no Poder Executivo, as mudanças que
venham a ser realizadas no audiovisual brasileiro precisam ser de cunho
democrático, observando os princípios constitucionais, sob pena de gerar
insegurança jurídica, pôr em risco as cadeias produtivas do audiovisual
brasileiro e comprometer a imagem espelhada de um país na sua mais
peculiar manifestação externa —sua identidade cultural nacional.