Como o mosquito da dengue derrotou o Brasil 

Quatro pacientes que receberam transplante de medula óssea contraíram dengue no Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo, em 2015. “Foram diagnosticados tardiamente. A última coisa que poderíamos pensar é que no hospital pudesse ocorrer transmissão”, diz o médico patologista Amaro Nunes Duarte Neto. “Fomos procurar, achamos numerosos criadouros no fosso do hospital, próximo à unidade de transplante. O mosquito [Aedes aegypti] prolifera em qualquer lugar favorável.”

O relato de Duarte Neto, professor da Universidade de São Paulo (USP), mantenedora do HC, ilustra bem a dificuldade de vencer a dengue no Brasil. Na semana passada, o Ministério da Saúde informou que 1.439.471 casos foram registrados no país nos primeiros oito meses do ano – um salto de 600% em relação ao mesmo período do ano passado. Vários estados estão em situação de epidemia. Em São Paulo, a incidência já é 37 vezes maior que em 2018.

O primeiro caso de dengue documentado clínica e laboratorialmente no Brasil data de 1981, em Boa Vista (RR). Contudo, de acordo com o Instituto Oswaldo Cruz, há relatos de ocorrência da doença em Curitiba no fim do século 19 e em Niterói no começo do século 20. O mosquito Aedes aegypti, originário da África, provavelmente chegou ao território brasileiro pelo menos cem anos antes – acredita-se que tenha vindo a bordo de navios negreiros.

Mas é possível vencer o mosquito transmissor da dengue? “A possibilidade de erradicação do Aedes aegypti é virtualmente impossível”, afirma o biólogo Magno Botelho, especialista em meio ambiente da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Mesmo localmente, se um município conseguisse essa proeza, rapidamente mosquitos de regiões vizinhas repovoariam esse local.”

Há uma conjunção de fatores favoráveis para que o bicho prolifere no Brasil. As condições ambientais são extremamente favoráveis, com temperaturas variando entre 20 e 40 graus na maior parte do território. “Além disso, as regiões mais densamente povoadas, como Sul e Sudeste, têm regime de chuvas adequado ao ciclo reprodutivo do mosquito, que, ainda por cima, é extremamente adaptável às eventuais variações climáticas tropicais”, completa Botelho.

“É um problema sanitário e climático”, define o médico patologista Paulo Saldiva, professor da USP. Ele lembra que a proliferação do mosquito é resultado não só das condições tropicais, mas também do crescimento desordenado das cidades e da precariedade do saneamento básico. “A procriação do mosquito está associada ao acúmulo de lixo, por exemplo”, acrescenta.

“Temos enorme dificuldade de controlar a dengue”, analisa o médico infectologista Edimilson Migowski, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Existe no país um crescimento urbano desordenado, urbanização precária, falta de fornecimento regular de água, de saneamento básico, de coleta regular de lixo, de política de reciclagem e de educação para a promoção de saúde. Esse é o pano de fundo – o mosquito é fruto de tudo isso.”

Guerra ao mosquito

Os esforços de combate ao Aedes aegypti reúnem uma sucessão de batalhas inglórias. Campanhas governamentais, fumacês, mutirões para eliminar água parada, entre outros. Botelho lembra que, somente em 2001, “foi oficialmente abandonada a meta (irrealizável) de erradicar o mosquito”. De acordo com Saldiva, “o veneno acaba funcionando como uma pressão seletiva no Aedes”.

“Não acredito que com a tecnologia de que dispomos atualmente o Brasil vá se ver livre da dengue”, afirma o médico Celso Granato, professor de infectologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Cingapura, que é muito menor do que o Brasil e tem mais dinheiro, não conseguiu.”

“Precisamos mudar a estratégia”, completa Granato. “O mosquito é muito adaptado ao meio ambiente, ele cresce em qualquer garrafinha PET, se aproveita da chuva. Então é muito difícil debelar a dengue com fumacê e esses químicos que a gente usa.” Os pesquisadores são, portanto, unânimes: acabar com o Aedes aegypti é impossível. A solução seria mesmo investir em educação e tecnologia.

Por educação entende-se um trabalho maciço de conscientização da população, para que não haja água parada nos quintais e, assim, a procriação do bicho diminua consideravelmente. Conforme ressalta Migowski, “80% dos criadouros estão nas casas das pessoas. Combate ao vetor é conscientização e educação. E isso não se faz de uma hora para outra”, diz o médico. “O principal problema da saúde na população brasileira é a falta de educação para a saúde.”

Quanto à tecnologia, é necessário primeiro o desenvolvimento de uma vacina abrangente, eficaz e realmente efetiva. “Hoje só se consegue imunizar para duas cepas [tipos], e é contraindicado para quem já teve doença por determinada cepa”, explica Duarte Neto. “Falta uma vacina efetiva que possa ser colocada em escala, abrangendo todos os subtipos da dengue”, completa Saldiva.

Outras táticas podem dar resultado, se aplicadas de modo abrangente. Granato enumera duas ideias, em fase de testes: uma delas é usar a Wolbachia, “uma bactéria que, no organismo do inseto, inibe a transmissão de dengue.” Outra tecnologia envolve mosquitos geneticamente modificados – uma alternativa mais cara. Nesse caso, insetos transgênicos são espalhados no ambiente, e seus descendentes morrem antes de chegar à fase adulta. Mas a experiência foi mal-sucedida em testes recentes na Bahia.