Produtores de coca na Colômbia: a chave de um país escravo do tráfico
Para chegar na região da Independência, que fica a cerca de duas horas e meia de Popayán, a capital do departamento de Cauca, faz falta um bom carro. Um que não salte tanto pelos caminhos intransitáveis que há quase três anos eram vigiados pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Por Esther Yáñez Illescas
Tradução: Mariana Serafini
Publicado 18/09/2019 18:00
Agora, depois da assinatura dos Acordos de Paz com o governo colombiano, a zona é um território em disputa permanente entre os paramilitares, os autodenominados dissidentes da guerrilha, o ELN [Exército de Libertação Nacional – maior guerrilha em atividade na Colômbia atualmente] e o Exército.
Cauca é um departamento [equivalente a estado no Brasil] perigoso ao sudoeste do país. O mais castigado pela violência dos grupos armados contra os líderes sociais que protegem os interesses dos camponeses que, nesta zona, sobretudo, cultivam folha de coca para sobreviver. São o primeiro elo da corrente de um negócio milionário onde todos estão implicados de uma ou outra maneira. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), o narcotráfico gerou ao menos 15 milhões de dólares na Colômbia em 2017 crescendo uns 150% em comparação a 2016, quando já significava 2% do PIB. E tudo isso depois da assinatura dos Acordos de Paz e a suposta implementação do ponto quatro dos tais acordos que é a “solução para o problema das drogas ilícitas” [obrigação do Estado].
Entretanto, o narcotráfico, que produz mais lucro que o setor cafeeiro no país, não só não tem visto diminuir seus altos benefícios, como tem aumentado seus recursos. Entre os anos de 2016 e 2017 o incremento dos cultivos de folha de coca foi de 17% e o país conta atualmente com 171 mil hectares ocupados pela planta, segundo dados do próprio governo. Por outro lado, são curiosas as cifras apresentadas pelos Estados Unidos, que superam inclusive as da Colômbia. Segundo a Oficina de Política Nacional de Controle de Drogas (ONDCP, pela sigla em inglês), o país sul-americano contava, ao final de 2017, com 209 mil hectares e uma produção potencial de cocaína que aumentou 19%. Animador.
No começo deste ano, o presidente colombiano, Iván Duque, afirmava que seu governo havia conseguido erradicar, nos primeiros quatro meses de 2019, mais de 80 mil hectares de cultivos ilícitos. A cifra soa estranha entre os camponeses da região da Independência que se reuniram num sábado no final de agosto para fazer uma assembleia popular e decidir como agir na próxima vez que o Exército chegar na zona para erradicar seus cultivos a força.
“Se vem o Exército e entregamos a plantação ficamos praticamente na rua”. A que fala é Rocío Chiconqué, de 36 anos, mãe solo de cinco filhos, despejada de Putumayo pela guerra e com dois irmãos assassinados. A história trágica de sua família é muito similar à do resto dos camponeses cocaleiros que se preparam para participar da assembleia.
“Tentamos ser humanos com eles, não atropelá-los, conversar… mas estamos dispostos a defender a plantação. Nós vamos cumprir quando o governo cumprir conosco. De outra forma não é possível. Não podemos aguentar a fome”, diz, para explicar o que aconteceu há menos de uma semana, quando a Força Pública (Exército) chegou com a intenção de arrancar, sem conversa e sem permissão, os cultivos que são o sustento das famílias.
O plano aprovado no ponto quatro dos Acordos de Paz inclui a substituição dos cultivos ilícitos pro outros sustentos que permitam estas famílias viver: café, banana, tomates. Qualquer coisa que garanta a economia familiar, ao menos como a folha de coca, que não é muito: apenas dois milhões de pesos a cada três meses (que é o ciclo da plantação, cerca de 625 dólares), algo em torno de 218 dólares por mês, que é equivalente, mais ou menos, ao salário mínimo na Colômbia. Não ficam ricos.
Mas este plano de substituição não está acontecendo e por isso os camponeses se reúnem em assembleia, para decidir o que fazer e como atuar diante do não cumprimento do governo, apesar dos tweets do presidente Duque alardeando progressos. Os dados são os dados e o último informe da ONU contra a Droga e o Delito (ONUDD) evidencia que quase nenhuma das 99.097 famílias inscritas no Programa Nacional Integral de Substituição de Cultivos Ilícitos (PNIS) recebeu o total dos pagamentos acordados e ao menos 40 mil destas famílias ainda não recebeu nem sequer a primeira parcela.
Pouco a pouco vai chegando gente para a assembleia de diferentes rincões da montanha que rodeia o galpão de tijolos à vista onde acontece a reunião. Há um espaço aparte para um fogão à lenha onde três mulheres já estão preparando o almoço, ainda que apenas tenha acabado de passar da hora do café da manhã. A panela para o arroz branco é de proporções descomunais. Também há recipientes para a mandioca cozida, os feijões, a salada e a carne.
O som das motos (o melhor meio de transporte para se locomover por esta zona inóspita) dos que vão aparecendo atrasados, desperta os que chegaram cedo e parecem sonolentos por causa do calor. Há café tinto, que quase não combate a sonolência porque sempre é mais água que café. Mas o mais impressionante é a vista para a imensidão dos cultivos verdes quase florescentes. Para um olho pouco acostumado é estremecedor e impressiona pela dimensão. Estas plantas são a terra e a disputa eterna de um país em guerra permanente.
Rocío tem em sua casa 6 mil pés de coca que ela cuida sozinha. O limite legal são 10. Cultivar folha de coca é fácil; é necessário apenas dedicar tempo, assim qualquer um pode fazê-lo. Há que regá-la, passar o agrotóxico, limpá-la e colhê-la quando cumpre seu ciclo de 90 dias. Uma arroba de folha de coca, que equivale a uns 12 ou 13 quilos, é vendida por uns 50 mil pesos colombianos (15,5 dólares). A mesma quantidade de café é vendida por um pouco mais, uns 60 mil pesos. A diferença está na chave de todo o conflito: o transporte e a comercialização.
As terras agrestes da região da Independência não são fáceis de chegar nem de sair. A falta de comunicação é a tônica e que permaneça assim é estratégico, assim como em outros tantos territórios da Colômbia, escondidos nos mapas e nos discursos oficiais. É parte da engrenagem que favorece a permanência do conflito. O que não se vê não existe, e melhor assim para os negócios milionários. A Independência é uma das principais rotas da droga colombiana. O narcotráfico controla seus hectares e facilita a produção porque dá todas as facilidades aos camponeses, que vivem em suas casas ilhadas na montanha e não têm transporte para levar seus cultivos aos centros e comercializá-los. Não importa. O narcotráfico os acode em suas casas e recolhe as sacas na porta de suas casas ou facilita um ponto próximo onde deixar a colheita através de fretes com animais.
Desta forma, a folha de coca se torna rentável. Muito mais que o café, que ninguém vai buscá-lo em casa e transportá-lo à civilização para ser vendido. Isso custaria muito dinheiro ao camponês e ao governo, bons caminhões, investimento, estrutura. Problemas e mais problemas.
“Estou de acordo com a substituição dos cultivos”, diz Rocío, “mas para isso precisamos de acesso às vias e à comercialização. Há muitas coisas que podemos cultivar aqui, mas primeiro o governo tem que nos facilitar a comercialização. Por ora, a coca é o único que dá lucro. Não ficamos ricos, mas pelo menos temos o pão de todo dia”.
Rocío está a sete anos em Independência e diz que agora vive tranquila. Antes vivia com medo diário de que a guerra levasse seus filhos. “Ter filhos homens antes era um perigo”, diz.
Mas o fato é que, ainda que as Farc não ocupem mais a região, a disputa pelo território continua sendo o dia a dia dos diferentes grupos armados que pretendem controlar o negócio ou extrair o máximo de rendimento. Segundo um informe da organização colombiana Pacifista, nos municípios onde querem substituir a coca, os homicídios aumentaram cerca de 38% depois dos Acordos de Paz.
Leider Valencia, que é camponês e porta-voz da Cocam (Coordenadoria Nacional de Cultivadores de Folha de Coca, Papoula e Cannabis, pela sigla em espanhol), garante que agora estão pior que há três anos, “antes não se via tanta violação dos Direitos Humanos, tantos homicídios… agora é muito complexo. Todo mundo quer fazer o que tem vontade e nossa comunidade está em meio a este conflito”.
Leider diz que antes do processo de paz ao menos sabiam que o grupo armado que ocupava o território eram as Farc. Agora não sabem quem são os que ameaçam, nem os que pedem as famosas propinas para permitir que os camponeses cultivem a folha de coca.
“O que temos analisado como camponeses”, continua, com uma das análises mais lúcidas sobre o que está passando que escutei até o momento em qualquer tribuna, “é que o processo de paz desempenhou um papel político para o governo, porque para eles as Farc eram o principal impedimento para que as multinacionais não entrassem em nosso território para explorar nossas riquezas. Assim que, acreditamos que o único que importava para o governo era que a guerrilha entregasse as armas e depois disso, mais nada, porque não vemos vontade política para que tenhamos melhores condições de vida”.
Uns cinquenta camponeses de rincões mais ou menos próximos estão participando da assembleia. É quase meio dia e o sol faz a tomada de decisões ser mais rápida. Jonathan Centeno está falando, ele é o porta-voz da Coordenadoria de Processo de Unidade Popular do Sudoeste Colombiano. Chegou em Independência com suas duas escoltas porque vive ameaçado há quatro meses. Fala com tanta força que os poucos sonolentos devido ao calor, que estavam pesarosos, abrem os cinco sentidos e escutam atentos.
“Vocês estão defendendo o que lhes dá de comer”, diz, grita, Jonathan. “Então não se esqueçam. Tarefa imediata: organizar a resistência porque não sabemos em que momento o Exército vai chegar com a intenção de erradicar nossas plantações”.
“As condições têm que ser claras, companheiros”, continua. “O governo avança, avançam as comunidades. Se vocês arrancarem seus cultivos sem garantias significa que vão ficar sem ter o que comer”.
Organizar a resistência é o resumo de várias horas de intercâmbio popular com oratórias em uma assembleia surpreendente. Os camponeses levam três anos esperando por promessas que pareceram certeiras depois de décadas de guerra nas costas de quem não suportava, nem suporta mais prorrogações; e a sensação de vazio neste galpão de tijolos e sem janelas poderia comer as palavras sobre a resistência, mas não o faz. Há ruído. Há palavras de ordem. Há crianças correndo e bagunça, e o almoço está pronto.
Alguém trouxe uma caixa de som gigante e de repente soa a música popular da região, uma espécie de salsa caleña [relativo à Cali] com letras de amor e desamor que mexem com tudo por dentro e por fora. Também são palavras de ordem de luta porque são emoções que vem das entranhas; e se dança com um pouco de rum depois do almoço feito no fogão à lenha. O sol já não queima e é a hora perfeita para as fotos de luz suave e perene.