A esquerda colabora para a direita ser vista como isenta de ideologia

"Quando a esquerda coloca seus caracteres ideológicos como uma visão de mundo “alternativa”, diferenciando-se do comum, mesmo sem querer ela se coloca em um pedestal social, deixando para todo o resto uma aura de normalidade".

Por Carolina Maria Ruy

ideologia

O presidente Jair Bolsonaro, desde a campanha de 2018 e, sobretudo, quando assumiu o cargo, gosta de mostrar ao mundo que é um inimigo de ideologias. Seu discurso incoerente com sua prática causa espanto a analistas que, muitas vezes, explicam como ele próprio age com base em ideologias muito rígidas e até extremistas. Quero propor, entretanto, inverter a questão. Não demonstrar como Bolsonaro age ideologicamente, mas debater sobre como também militantes de esquerda, em seu altar ideológico, colaboram para que a direita e o status quo sejam vistos como isentos de ideologias.

Em seu artigo“Essa tal de ‘ideologia’”, no Estadão, de 26/9, o jornalista Eugenio Bucci discorreu brilhantemente sobre o conceito e sobre como ele reapareceu no atual debate político. “Eis então que, hoje, quando a palavra já havia caído em desuso, o cidadão que não sabe o que é ideologia se tornou presidente do Brasil”, disse, explicando que, para ele “Ideologia” é estritamente um sinônimo chulo de mentira e que “em todas essas passagens a ‘mentira’ vem associada à esquerda, ao socialismo ou a forças que conspurcam a ‘família’”.

Bucci está certo. Mas, embora talvez Bolsonaro não saiba o que é ideologia, ele não está sendo ingênuo em taxar de ideológico tudo aquilo que é contra o que ele defende. Seu discurso, por mais horrível que seja, é facilmente assimilado pelo povo que, com base justamente na distorção do conceito de ideologia, o elegeu.

E, por que é tão fácil para Bolsonaro associar ideologia à esquerda, defendendo ao mesmo tempo uma ideologia tão nítida e extravagante, de direita? Porque o senso comum sempre viu o estado das coisas como uma verdade absoluta, não como uma construção histórica e social. E, mais do que isso, a esquerda, de modo geral, com exceções, sempre fez questão de ostentar uma imagem própria, diferenciada, com grande identidade interna, criando padrões rígidos com base em uma interpretação ideológica do mundo.

Pensei nisso quando fui chamada a colaborar com a seleção de filmes e obras para um ciclo de debates sobre o mundo do trabalho. A iniciativa é válida e as intenções são as melhores, mas avaliei que a lista proposta não rompe a bolha da esquerda. Há pelo menos 50 anos fazemos os mesmos debates em torno dos mesmos filmes e os resultados disso tem sido muito menos avançar para a sociedade para melhorar a comunicação e o senso crítico, e muito mais validar um grupo e reforçar um “estilo esquerda”.

Enfim, reclamamos que Bolsonaro taxa a nós da esquerda de ideológicos, e esconde que ele, mais do que qualquer outro presidente que tivemos, é um cruzadista fanático e dogmático. Mas somos negligentes em compreender as ideologias embutidas no mundo a nossa volta. Não prestamos atenção nas novelas, por exemplo. Mas nos empenhamos em debater pela milésima vez este ou aquele filme (prefiro não citar nomes).

Outro exemplo, mais distante. Na entrevista coletiva da Presidente Dilma Rousseff no Palácio da Alvorada após a aprovação do impeachment no Senado Federal, em agosto de 2016, ela e vários apoiadores usaram vermelho, em uma clara orquestração alusiva à ideologia esquerdista. Em seu discurso ela leu um poema de Vladimir Maiakovski, poeta russo, falecido em 1930, também chamado de “o poeta da Revolução”.

Ou seja, em um momento crucial da história brasileira, a principal personagem da ação que o povo acompanhava por jornais, TV, internet, ostentou signos próprios de um segmento. No lugar estabelecer maior identificação entre ela e o povo que a elegeu, Dilma dirigiu-se à militância com quem compartilha a mesma ideologia.

Desta forma é compreensível que Bolsonaro surfe em um discurso divisionista, delimitando seus oponentes sob um mesmo e indecifrável guarda-chuva. Quando a esquerda coloca seus caracteres ideológicos como uma visão de mundo “alternativa”, diferenciando-se do comum, mesmo sem querer ela se coloca em um pedestal social, deixando para todo o resto uma aura de normalidade. E isso é um engano e um autoengano. Como disse Bucci, “Toda palavra é ideológica (é signo ideológico, como enxergou Bakhtin), pois toda palavra fabrica uma realidade substituta para aquela que não poderíamos tocar, ver ou ouvir se não fosse a linguagem. Só manejamos o que chamamos de realidade por meio da linguagem”. Em outras palavras, em qualquer comunicação humana existe ideologia.

Não é automático compreender isso, uma vez que fomos criados com base em premissas como “a família (hetero sexual e com filhos) é a célula mater da sociedade”. Mas penso que só avançaremos se enfrentarmos esse debate. Se conseguirmos entender que nossas ideologias não são alternativas. Elas estão dentro deste mundo, com as referências comuns a todos, novelas, filmes, imprensa. Precisamos aproveitar a deixa que Bolsonaro, com seu discurso radical, impõe, se realmente quisermos avançar e não apenas validar nossos grupos diferenciados e nosso estilo vanguardista.

Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical