Renato Rabelo: Camarada Amazonas, presente!

Uma breve memória do pensamento e do legado de João Amazonas (1912-2002), líder histórico do PCdoB que nasceu há exatamente 108 anos

Quase uma constância, inúmeras vezes visitava o camarada João Amazonas no primeiro dia do ano, data do seu nascimento, no ano de 1912. Eu era acompanhado muitas vezes por Conchita – minha esposa – e recebido por João e Edíria, sua companheira até a morte, sempre muito simples, afável e afetuosa. Nos serviam chá e biscoitos – e a conversa rolava geralmente por mais de três horas, com divagações, atualização dos mais variados assuntos, rememorações, até mesmo se desenhava sortidas abstrações, em um ambiente terno, de prazer e confiança mútua.

Tive a ventura de conviver com o camarada João desde maio de 1973, no primeiro encontro, celebrado entre ele e Pedro Pomar, pelo PCdoB, e Haroldo Lima e eu, pela AP, num “aparelho” clandestino do Partido, em plena ditatura militar, no curso da incorporação da Ação Popular Marxista-Leninista ao Partido Comunista do Brasil. A partir desse desenlace, logo me dediquei, ao lado de João, na formação de uma retaguarda de apoio à resistência armada no Araguaia. Na sequência, em novas circunstâncias, junto a João Amazonas e Diógenes Arruda, vivemos e atuamos na condição de exilados em Paris, França, durante quase dois anos.

Na volta ao Brasil, pós-anistia, no final de 1979, desenrola-se um novo ciclo de existência do PCdoB, começando com a paciente reestruturação do Partido, redemocratização e início do maior período de legalidade de sua história. João Amazonas não viveu para ver a vitória da campanha presidencial consumada no final de 2002, com o que, desde os primórdios a partir de 1989, ele contribuiu substancialmente.

Minha vivência com Amazonas

Tornou-se, para mim, uma fortuna essa larga vivência de quase 30 anos ao lado e na luta com esse eminente dirigente comunista, arguto elaborador político e teórico, ideólogo e construtor protagonista do Partido Comunista desde a década de 1940. Essa trajetória foi marcante na minha formação política, teórica, metodológica e ideológica. Descortinou para mim novos horizontes, forjando as condições necessárias para galgar o maior desafio da minha experiência política e humana – assumir a presidência de um partido lastreado de insignes dirigentes, com um rastro de heróis e mártires, na comunhão do grande desiderato histórico: abrir a senda para edificação de uma nova sociedade pós-capitalista, socialista, até a “utopia” marxista, o comunismo.

Tudo isso deixou em mim não a resignação, mas a convicção: o tempo apreendido com o pensamento avançado, levado à sinergia da força motriz de grandes contingentes dos que trabalham, ainda dará conta à história de profundas transformações, disruptivas, revolucionárias.

A prática e o pensamento de João Amazonas puseram-me a lógica da procura da compreensão do todo, de uma situação concreta – um simples acontecimento ou uma época. Assim, intentar levar a cabo um conhecimento profundo, sem apenas reduzi-lo à aparência do imediatismo, contextualizando num longo prazo. É a tentativa da elaboração que possa realizar a sistematização histórica e teórica. Para João, tudo vindo do humano, da história, do acontecido concreto ou imaginário, deve passar pelo nosso olhar e crivo, transitando do espontâneo ao consciente, a fim de que possa permitir uma resposta, uma solução, um discernimento lógico objetivo.

O rico e extenso legado de Amazonas

A práxis constante de longa atividade política nas diversas circunstâncias de tempo e lugar, do seu incessante estudo, permitiu a João, de forma persistente, colocar o Partido no curso dos acontecimentos políticos, permitindo, então, uma prática que fosse a base para definições sistêmicas – estratégica, tática e programática. Nesse sentido, o pensamento de Lênin tinha-lhe sido uma referência maior. Ele conceituava a última grande obra de Lênin, Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo (1920), como uma “verdadeira enciclopédia da estratégia e da tática”. E afirmava: “É uma obra tão densa, baseada em gigantesca experiência revolucionária que, em dezenas de leituras feitas, sempre se descobre algo novo”.

Tornou-se clássica sua caracterização de que a tática deve ser “ampla, combativa e flexível” – e, de que, a luta dos trabalhadores, para conseguir êxito, deve seguir uma relação dialética: “Ampliar para radicalizar, radicalizar para ampliar”. Assim, querer radicalizar sem acumular e ampliar forças políticas e sociais nos leva ao isolamento e à derrota. Já diante da radicalização, é preciso sempre mais ampliação de forças para avançar.

João Amazonas, em sua rica experiência, adquiriu agudo senso tático em função do objetivo estratégico, para deste não se afastar, em correta relação entre estratégia e tática. Ele nunca teve ilusões do papel antinacional e antidemocrático das classes dominantes conservadoras no Brasil. E nunca perdeu de vista o alvo de investida principal, o adversário a ser isolado e derrotado. Na campanha pelas Diretas Já (1983-1984), a militância comunista participou de forma consequente e intensa.

Quando a emenda que devolvia aos brasileiros o direito de votar para presidente da República foi derrotada no Congresso Nacional, Amazonas indicou – e o PCdoB defendeu – que o foco da luta se transferia para o próprio Colégio Eleitoral, instituição do regime militar. Este tornava-se o meio viável, naquela situação dada, porquanto podia formar pela primeira vez uma maioria pela qual se poderia vencer a ditadura, abrindo o caminho para conquistas maiores. Manter nossa ausência no Colégio Eleitoral ainda permitiria a sobrevida do regime ditatorial.

E adiante, após três derrotas consecutivas de Lula à Presidência da República, a proposta defendida por Amazonas – de que a esquerda sozinha, dificilmente ganharia as eleições presidenciais e, menos ainda, poderia governar o País, em face da estrutura da correlação de forças existente – demonstrava ser correta. Diante disso e das próprias lições da derrota, o PT estendeu a aliança, permitindo o alcance da primeira vitória de Lula, em 2002. O núcleo da aliança foi formado com o Partido Liberal, contando com José Alencar, e o segundo turno eleitoral garantiu a vitória final, com aliança mais alargada ao centro-direita do espectro político.

De forma indubitável, explícita ou implícita, três chaves conceituais do arsenal leninista, assumidas na orientação do PCdoB e instruídas por Amazonas, justificam e fundamentam a aplicação dessas orientações adotadas: “análise concreta da situação concreta”; “a essência da tática é a correlação de forças”; “para o êxito da luta revolucionária, é imperativo a celebração das alianças”. O que conta é a influência que o aliado tem sobre um setor determinado da sociedade – ou melhor, seu peso quanto a possibilidade de desequilibrar a correlação de forças existente –, podendo ser um aliado “temporário” e “vacilante”.

Amazonas também deixou importante contribuição, na qual se empenhou vivamente, acerca do período de extinção do socialismo na União Soviética (URSS) e no Leste europeu. Sob sua direção, a realização do significativo 8º Congresso do PCdoB, em 1992, trouxe à luz do dia o pano de fundo da débâcle: sem o desenvolvimento da teoria, os problemas estruturais postos pelo desafio de construir o socialismo não puderam ser enfrentados de forma condizente com a exigência histórica daquele período. E foi além: seu estudo desenvolve a elaboração teórica da fase objetiva de transição do capitalismo ao socialismo, em seu brilhante trabalho Capitalismo de Estado na Transição para o Socialismo – Notável Contribuição de Lênin à Teoria Revolucionária do Progresso Social.

A fundamentação central defendida por João Amazonas nessa obra foi um começo que permitiu o conhecimento mais consistente, antes “adormecido”, do processo contraditório na formação econômico-social, sob a condução do novo poder estatal, com etapas determinadas, na transição socialista. Hoje, podemos compreender que foi uma visão prenunciadora de Amazonas, refletida no estudo e na pesquisa que estamos realizando na atualidade, que enfoca o conceito de “nova formação econômico-social” e seus fundamentos de uma “ressignificação da transição socialista”, no contexto da nova luta do socialismo contemporâneo na China, Vietnã e Cuba.

É extenso e rico o legado político e teórico deixado por João Amazonas. Muito se poderia ainda destacar – por exemplo, a respeito da sua clarividência sobre o papel e o lugar da organização partidária dos comunistas na luta política e ideológica, instrumento insubstituível para a conquista do poder político estatal e o êxito revolucionário. A consequência dessa concepção traduzida em como cuidar sempre e melhor do partido – atenção incessante pronunciada e estimulada por ele.

Sua luta e seu desvelo pela aplicação do Programa do Partido, o papel crescente das mulheres e da juventude na formação da força motriz empenhada nas profundas transformações sociais e a relação primordial do Partido com as massas trabalhadoras, a prioridade da formação marxista-leninista dos quadros e militantes – é extensa a lista da sua dedicação e contribuição.

Neste dia em que comemoramos o nascimento de João Amazonas, enaltecemos a sua gloriosa e saudosa memória juntos à nossa militância e ao nosso Partido.

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2 comentários para "Renato Rabelo: Camarada Amazonas, presente!"

  1. Wanderley Gomes da Silva disse:

    João Amazonas é o exemplo a ser seguido,dirigente estudioso e altamente capacitado para a grandiosa tarefa de presidir esse gigante chamado PCdoB,tive a alegria de conhecê-lo e estar com ele.Ele era simplesmente um dirigente extraordinário.

  2. Apolinário Rebelo disse:

    Denso e profundo texto. João Ama boas foi e será sempre uma referência para os brasileiros ! Abc

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