“Tente me parar” – o mantra dos líderes que governam impunemente

Não é condição suficiente para o fascismo se enraizar, mas é necessária: a vontade de líderes políticos não só de violar a lei, mas de quebrá-la é um passo fatal para a troca da democracia pelo terror autoritário.

Isso se vê em ação nos EUA, onde o desrespeito flagrante do Partido Republicano pela constituição permitirá que Donald Trump escape do impeachment.

Se Trump for eleito para um segundo mandato, testará ao máximo o potencial de exercer poder à margem da constituição.

O fenômeno não se limita aos EUA. Vários governos usam hoje a ilegalidade quase como um distintivo de honra.

Governos fascistas e pró-fascistas compartilham, entre outras, duas características relacionadas: orgulhosamente desprezam as leis que deveriam restringi-los, enquanto introduzem novas leis, muitas vezes inconstitucionais, para conter a oposição política ou oprimir minorias.

No Brasil, ações contra povos indígenas, políticos da oposição e jornalistas são incentivadas e celebradas nos mais altos níveis do governo. Jair Bolsonaro venceu a eleição presidencial de 2018 com a ajuda de um golpe judicial em que a lei foi afrontada para garantir a prisão do líder, Luiz Inácio Lula da Silva. Bolsonaro foi fotografado abraçando dois dos suspeitos no assassinato da vereadora de esquerda Marielle Franco (PSOL), e tentou bloquear as investigações de corrupção contra seu filho Flávio, que supostamente tem vínculos estreitos com membros da quadrilha paramilitar acusada de matar a vereadora.

Em resposta a protestos democráticos, o ministro da Economia do Brasil ameaçou impor a lei marcial. Bolsonaro pediu à polícia que execute suspeitos de crimes: “Esses caras vão morrer nas ruas como baratas – e é assim que deve ser.” Seus comentários racistas sobre os povos indígenas e a restrição das agências que deveriam protegê-los poderiam ajudar a explicar uma nova série de assassinatos de no campo. Grupos de direitos humanos estão pedindo ao Tribunal Criminal Internacional que investigue Bolsonaro por incitação ao genocídio.

O jornalista investigativo Glenn Greenwald, que publicou relatórios explosivos sobre corrupção e crime no governo Bolsonaro, e seu marido, o deputado de esquerda e colunista do “Guardian” David Miranda, foram ameaçados de morte repetidas vezes, com detalhes sobre suas vidas que somente o Estado poderia saber. Greenwald foi, de maneira espúria, acusado de crimes cibernéticos.

Na Índia, o primeiro-ministro Narendra Modi, depois de descobrir que sua suposta ligação aos massacres de Gujarat em 2002, não parece mais preocupado em manchar seu nome, e lança as bases de um etno-nacionalismo cruel. Sua nova lei de cidadania nega deliberadamente os direitos aos muçulmanos e pode tornar milhões de pessoas apátridas. As pessoas que protestam contra esse ato são brutalmente atacadas pela polícia. A polícia e as gangues armadas invadiram duas universidades de Délhi, espancando aleatoriamente os estudantes, para espalhar o terror generalizado. Em Uttar Pradesh, oposicionistas políticos são rotineiramente presos sem acusação e torturados.

Modi rasgou a constituição para anexar Jammu e Caxemira. A polícia disparou contra pessoas que protestavam pacificamente contra essa ação ilegal, cegando algumas delas com tiros de fuzis. Líderes políticos foram presos e as comunicações encerradas. Os funcionários tratam essa ilegalidade como uma piada brutal. O ministro-chefe do estado de Haryana, Manohar Lal Khattar – um aliado próximo – se vangloria de que “agora vamos trazer meninas da Caxemira”, como espólio colonial.

O presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, se gabou de andar pelas ruas de Davao em sua moto, quando era prefeito da cidade, atirando em pessoas que suspeitava serem criminosas. Desde que se tornou presidente, transformou a polícia em um esquadrão da morte gigante, capacitando-os a assassinar pessoas que acreditam estarem envolvidas em crimes relacionados às drogas. Sem surpresa, essa licença geral levou ao assassinato de oposicionistas políticos e defensores da terra e do meio ambiente.

Mesmo quando aplaude a morte de suspeitos de tráfico de drogas, Duterte brinca sobre usar drogas ilegais para se manter acordado em cúpulas internacionais. Os oposicionistas são presos, juízes são demitidos e substituídos, jornalistas são processados ​​por acusações falsas. A imposição da lei marcial na ilha de Mindanao é usada para esmagar a dissidência; a oposição é tratada como terrorista, e oponentes são assassinados.

Como esses outros palhaços assassinos, Trump agora sente que pode fazer qualquer coisa. No passado, sua equipe jurídica sugeriu que ele tinha imunidade total, gabando-se de que poderia literalmente se safar de assassinato. Uma cultura de impunidade está se espalhando pelo mundo. “Tente me parar” é o lema implícito em países que vão da Hungria a Israel, Arábia Saudita à Rússia, Turquia à China, Polônia à Venezuela. Exibindo seu desrespeito à lei como expressão de poder.

Também está acontecendo no Reino Unido, embora até agora em menor escala. A votação do Brexit, que eventualmente levou Boris Johnson ao cargo, foi garantida com a ajuda de uma flagrante ilegalidade. O governo pretende realizar uma limpeza de ciganos e viajantes ciganos, sabendo que isso ofende a própria Lei da Igualdade, e provavelmente levará a um caso perante o tribunal europeu de direitos humanos. É quase como se congratulasse com o confronto.

Estes são experimentos do absolutismo. Eles não representam fascismo por si só. Mas em conjunto com a elevação de homens absurdos e desesperados, o ataque a minorias e imigrantes, violência política, vigilância em massa e zombaria generalizada da democracia e da justiça social, sugerem que alguns países estão começando a se encaminhar para os mais sombrios de todos os lugares políticos.

A normalização da impunidade é possivelmente o passo mais importante em direção ao governo autoritário. Nunca deixe que isso seja normal.

(*) George Monbiot é colunista do Guardian.

Fonte: The Guardian; tradução: José Carlos Ruy