Dois papas e uma guerra santa: a disputa entre Bento e Francisco

Há vários embates em torno do livro no qual Bento 16 publicou textos críticos à visão de Francisco, mas do qual acabou retirando sua assinatura. O pano de fundo é a disputa sobre o Concílio Vaticano 2º e o próximo pontificado.

Vigora um “estúpido preconceito pelo qual o papa Francisco seria só um homem prático privado de formação teológica ou filosófica particular e eu teria sido unicamente um teórico da teologia que pouco entendeu da vida concreta de um cristão hoje,” escreveu o papa emérito Bento 16 ao ex-prefeito do Secretariado para a Comunicação do Vaticano, Dario Edoardo Viganó, em março de 2018.

A ocasião era a preparação de A Teologia de Papa Francisco, uma coletânea de 11 livretos de diferentes teólogos sobre o pensamento do pontífice. Viganó publicou, como introdução à obra, a carta em que Bento 16 prosseguia desejando que os livros “ajudassem a ver a continuidade interior entre os dois pontificados, ainda que com todas as diferenças de estilo e temperamento”.

Cortou, porém, o último parágrafo da carta. Aquele em que, respondendo ao pedido de Viganó, Bento 16 se recusava a escrever a introdução. “Sempre escrevi ou me manifestei apenas sobre livros que realmente li”, justificou. O imbróglio custou o cargo de Viganó, mas revelou a importância do aval de Bento 16 para Francisco. Viganó imaginou que, para ter esse aval, valia até usar o truque que tentou.

Ainda não custou o cargo de ninguém, mas o Vaticano está de novo às voltas com uma confusão em torno do que o papa emérito escreveu, para quem e com que intenção. O estopim da crise foi o anúncio, pelo jornal francês Le Figaro, do livro From the Depths of Our Hearts (do fundo de nossos corações), escrito a quatro mãos pelo papa emérito e pelo cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação do Culto Divino e da Disciplina dos Sacramentos.

“Suplico humildemente ao papa Francisco seu veto contra todo enfraquecimento da lei do celibato sacerdotal, ainda que limitado a uma ou outra região,” diz o livro. Foi exatamente o que pediu a maioria dos participantes do Sínodo da Amazônia, realizado em outubro passado: a ordenação de homens casados para suprir a carência de padres da região. Na última quarta (12), o papa Francisco descartou a proposta.

O celibato sacerdotal vigora na Igreja Católica desde o século 4º, diz Sarah. As exceções – comunidades reconciliadas com Roma vindas do Oriente ou da Igreja da Inglaterra – são, na opinião expressa no livro, concessões temporárias da Igreja. Diante da pressão exercida sobre Francisco para mudar a disciplina mais do que milenar, Sarah e Bento 16 afirmam, citando Santo Agostinho, que não podem mais se calar.

Sendo o mundo – ou ao menos a blogosfera – o que é, uma enxurrada de críticas caiu sobre Bento 16 por ter rompido o silêncio a que sua posição o obrigaria, e sobre Sarah por usar Bento 16 para sua própria agenda. “A polêmica voltada a me manchar, sugerindo que Bento não foi informado do lançamento do livro, é completamente desprezível”, disse Sarah em 14 de janeiro.

Na ocasião, ele detalhou a gênese do livro. Em uma visita a Bento 16 em 5 de setembro do ano passado, o cardeal lhe teria proposto que escrevesse algo em defesa do celibato sacerdotal. Sarah não esperava que Bento aceitasse “pela polêmica que isso poderia causar na mídia”, mas, 15 dias depois, o papa emérito lhe comunicou que já havia iniciado um texto sobre o assunto e que a conversa o estimulara a terminar.

Cerca de um mês depois, Sarah recebeu um texto de Bento acompanhado de uma nota autorizando-o a usá-lo como achasse melhor. Sarah achou o texto “muito longo e profundo” para um jornal, sua ideia inicial, e propôs a Bento publicar em livro com um capítulo dele, Sarah, mais uma introdução e uma conclusão escrita a quatro mãos. Em 19 de novembro, o livro completo, com capa e tudo, foi mostrado a Bento 16, que o aprovou seis dias depois: “De minha parte, o texto pode ser publicado como o senhor planejou”, disse em nota.

No dia 14 de janeiro, o secretário pessoal de Bento 16, cardeal Georg Gänswein, afirmou: “Sob instruções do papa emérito, pedi ao cardeal Robert Sarah para entrar em contato com a editora do livro e pedir a eles que tirem o nome de Bento 16 como coautor do livro e removam sua assinatura da introdução e da conclusão também. O papa emérito sabia que o cardeal estava preparando um livro e enviou um texto sobre sacerdócio para ele usar como quisesse, mas não aprovou um projeto para um livro em coautoria e não viu nem autorizou a capa. É um mal-entendido que não põe em questão a boa fé do cardeal Sarah”.

As instruções podem ter sido do papa emérito, mas, segundo o vaticanista italiano Antonio Socci, a ordem veio do papa mesmo. Citando fontes “muito próximas”, Socci disse que Francisco ficou furioso com o aparecimento do livro, convocou Gänswein e mandou que ele fizesse o papa se distanciar do projeto.

“Em razão das polêmicas incessantes e mentirosas que não pararam desde o início da semana em relação ao livro”, disse Sarah em outro comunicado, de 17 de janeiro, “eu me encontrei com o papa emérito Bento 16. Pudemos constatar que não há nenhum mal-entendido entre nós. Saí muito feliz, cheio de paz e de coragem desse belo encontro. Peço-vos que leiam e meditem sobre Do Fundo de Nossos Corações”.

Bento 16 já se manifestou por escrito contra ideias caras a Francisco sem ter despertado uma campanha de difamação na blogosfera como essa que se viu. No ano passado, depois do sínodo sobre abusos sexuais do clero realizado em fevereiro, Bento 16 publicou um ensaio em que negava a principal conclusão do encontro: a de que os abusos eram fruto do clericalismo, um dos espantalhos favoritos de Francisco em seu afã de reinventar a Igreja.

Bento 16 culpava, em vez disso, o solapamento da moral sexual tradicional, mesmo dentro da Igreja, depois da revolução sexual dos anos 1960. Houve reclamações. Padres, blogueiros e padres blogueiros fizeram pouco do papa emérito, exatamente como se ele fosse “unicamente um teórico da teologia que pouco entendeu da vida concreta de um cristão hoje”.

A questão é que, agora, não estão em jogo os dois papas, mas o próximo. E Sarah é o que há de mais próximo a um líder da oposição na Igreja, hoje. Sarah talvez já seja velho para ser eleito papa, embora, aos 74 anos, seja dois anos mais jovem do que Francisco quando assumiu o posto. Bento 16 tornou-se papa aos 78. Todavia, um pontífice negro, como Sarah, seria o sonho de uma crescente e cada vez mais militante ala da população católica do mundo que, na falta de termo melhor, se vê e é vista como conservadora.

Sarah nasceu num dos países mais pobres do mundo, a Guiné. Dos 12 milhões de habitantes de seis etnias diferentes, 86% são muçulmanos e menos de 9% são cristãos. Difícil imaginar algo que corresponda mais à periferia do mundo rumo à qual o papa Francisco quer sua Igreja. Num futuro conclave, ainda que não seja eleito, ele será um grande eleitor, como os vaticanistas chamam os líderes das alas que disputam a escolha do papa.

Ele já falou e escreveu contra teses caras aos bergoglianos. Em junho de 2015, cinco cardeais e mais de 40 bispos africanos se reuniram em Acra (Gana) em preparação para o Sínodo da Família, marcado para outubro seguinte. “Estejam conscientes da missão da Igreja; protejam a sacralidade do casamento que está agora sendo atacada por todas as formas de ideologia que pretendem destruir a família na África. Não tenham medo de ressaltar o ensinamento da Igreja sobre casamento”, afirmou na ocasião. Os africanos, liderados por Sarah, se opuseram à liberação da comunhão aos divorciados casados de novo.

Para a maioria dos católicos do mundo, a principal marca do Concílio Vaticano 2º (1962) é o abandono da missa em latim, forma de celebração autorizada novamente por Bento 16 em 2007. Em julho de 2015, numa conferência em Londres sobre o documento que liberou o uso do missal antigo, Sarah, como responsável pelo culto da Igreja Católica, aconselhou bispos e padres do mundo inteiro a rezar a missa, a partir do início do ano litúrgico seguinte, em novembro, “ad orientem”.

A expressão latina designa a missa rezada com o padre virado para o altar, na mesma direção em que os fiéis, portanto. Como as igrejas antigas foram todas construídas de modo a que a nave central fique na direção leste-oeste, com o altar na extremidade leste, “ad orientem”, isto é, para o leste, significa de frente para o altar. “Estou profundamente convencido de que nossos corpos devem participar dessa conversão. A melhor maneira é certamente celebrar, padres e fiéis, todos juntos, na mesma direção: na direção do senhor”, disse.

O cardeal foi quase imediatamente desautorizado pelo papa. O fato é que Sarah é o campeão de uma comunidade que cresce vigorosamente na Igreja: a de jovens adeptos da missa antiga. Os jovens que Francisco criticou publicamente dizendo não compreender “tanto rigor”.

A disputa pelo futuro papado já começou. Os bispos alemães são os mais radicais modernistas da Igreja e a principal base de sustentação de Francisco. Eles, na verdade, mais lideram o papa do que são liderados por ele. No ano passado, deram início a um sínodo nacional para discutir celibato sacerdotal, ordenação de mulheres, comunhão para divorciados e uma nova visão sobre sexualidade, código para liberalização da doutrina quanto à homossexualidade.

O Vaticano informou aos alemães que essas questões só podem ser tratadas pela Igreja universal. Francisco em pessoa se dirigiu aos bispos dizendo que não realizassem o sínodo. Os alemães ignoraram a ordem, e o sínodo está em curso. Esses mesmos alemães já declararam que a Igreja não tolerará um próximo papa que não seja como Francisco.

No fim de 2019, o papa nomeou o cardeal filipino Luis Antonio Tagle como prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos. Tagle é chamado de “Francisco da Ásia”, por suas posições estreitamente alinhadas às do papa. O movimento foi visto, dentro e fora da Igreja, como um esforço de aproximar Tagle dos demais cardeais, com vistas ao próximo conclave. Tagle é candidato a liderar a ala mais bergogliana da Igreja.

Todos esses personagens, porém, estão fazendo seus lances numa disputa que vem de longe e teve como protagonistas João Paulo 2º e o arcebispo de Milão Carlo Maria Martini, morto em 2012. Depois do Concílio Vaticano 2°, e especialmente depois da condenação do uso de anticoncepcionais por são Paulo 6º, em 1968, Martini se tornou um crítico ácido do que via como hierarquia desvinculada da vida dos cristãos modernos e excessivamente aferrada ao rigor disciplinar do passado.

Com a eleição de João Paulo 2° para o cargo que os fãs de Martini imaginavam que deveria ser dele, o arcebispo de Milão foi apelidado pela imprensa italiana de antipapa. “Não sou”, disse ele. “Sou o antepapa.” Sua ideia era concentrar esforços na eleição do papa seguinte e transformar o pontificado de João Paulo 2° num simples interregno do projeto de ruptura com a tradição da Igreja que ele e outros progressistas acreditavam ter sido decidida pelo Concílio. Foi Martini, jesuíta como Francisco, que apresentou o argentino ao grupo de cardeais que liderava informalmente.

João Paulo 2° e seu braço direito, o então cardeal Joseph Ratzinger, futuro Bento 16, definiram o que foi chamado de “hermenêutica da continuidade”. O nome pomposo representa uma ideia simples: todas as decisões do Vaticano 2º têm de ser interpretadas em harmonia com a tradição milenar da Igreja. Se alguma parece uma ruptura, é porque não foi entendida direito.

No cerne dessa disputa estão duas visões quase opostas da Igreja. Pode-se dizer que, para Martini e os modernistas do Vaticano 2°, a Igreja deve celebrar a humanidade. Sua missão principal é caminhar com os homens e mulheres do mundo e, como gosta de dizer Francisco, escutá-los na luta por promoção humana, justiça social e, especialmente com o atual papa, a preservação da natureza.

“A Igreja está gravemente enganada quanto à natureza real da crise se pensa que sua missão essencial é oferecer solução para todos os problemas políticos relativos à justiça, à paz, à pobreza, à recepção dos imigrantes, e se esquecer da evangelização”, afirmou Sarah numa entrevista quando era diretor da Cor Unum, órgão do Vaticano responsável pelas obras de caridade no mundo.

“Se a Igreja, com a obsessão que tem hoje com os valores da justiça, dos direitos sociais e da luta contra a pobreza acabar, como resultado, esquecendo sua alma contemplativa, ela falhará em sua missão.” É, como tem sido desde o tempo de Jesus, uma tensão em torno do que significa a Igreja “estar no mundo”, mas “não ser do mundo”.

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