Sobre a “morte da esquerda”

Em artigo recentemente publicado em El País, Vladimir Safatle afirma a morte da “esquerda populista”, e vem gerando inúmeros comentários e críticas.

O autor até acerta no que diz respeito ao esgotamento de certos setores da esquerda em não atingirem as massas que nas últimas eleições optaram pela direita, e não é uma direita qualquer, mas sim de corte fascista associada com um rigoroso programa neoliberal liderada por Guedes dando prosseguimento às bases fincadas pelo governo Temer. O problema do seu artigo é do seu diagnóstico quanto à esquerda populista, pois a seu ver o seu ciclo já está esgotado e marcado por derrotas ao citar como exemplo o governo Jango antes do governo Lula.

O seu erro principal consiste em depreciar o histórico do populismo de esquerda no Brasil, pois representou um grande modelo de mobilização popular nos anos 1950/60, e que teve uma forte sobrevida durante os governos Brizola no pós 1979. O populismo representado por Brizola, Jango, Arraes, Julião, e da intelectualidade isebiana (especialmente Guerreiro Ramos e Vieira Pinto) expressou o nacionalismo revolucionário anti-imperialista que marcou as lutas de libertação nacional do chamado Terceiro Mundo. É o que Laclau define o populismo de esquerda enquanto uma ideologia nacionalista revolucionária que expressa a contradição Povo X Bloco no Poder. Safatle reproduz em seu artigo para atingir o lulismo o mesmo preconceito da já datada (e equivocada) perspectiva uspiana que predominou na seara acadêmica entre os anos 1960-1980, e não se limitando à própria USP, mas que atravessou a cidade de São Paulo e sendo reproduzida em diversos espaços acadêmicos. Essa leitura de fundo funcionalista pautada na mobilização do campo à cidade onde teria se formado uma nova classe operária sem consciência revolucionária e de classe, e diluída nas lideranças carismáticas e subalternas ao Estado. Isso ficou expresso nas teses defendidas por Weffort, Ianni, FHC, Marilena Chauí, Maria Sylvia Carvalho Franco, etc. Essas análises eram completamente equivocadas e reducionistas já que colocavam na mesma cesta Ademar de Barros, Jânio Quadros conjuntamente a nomes como Brizola, Arraes e Julião. Não separavam o populismo de direita do de esquerda. Chega a ser risível de tão absurdo associar Brizola e suas políticas contra o latifúndio e de encampações de empresas estrangeiras em seu governo no RGS (na década de 1980 encampou as empresas de ônibus da família Barata que foram devidamente devolvidas num dos primeiros atos do governo Moreira Franco) ao lado de Ademar de Barros.

O nacionalismo popular foi sempre uma ideologia de mobilização e de efetivação de uma consciência crítica e de engajamento. Chega a ser paradoxal Safatle citar o exemplo positivo da Argentina diante o julgamento da junta militar. Ora, distintamente do Brasil onde o populismo de esquerda foi varrido pelo meio acadêmico uspiano (digo sobre a USP pregressa já que a mesma como outros centros acadêmicos paulistas e fora de São Paulo há atualmente uma maior diversificação, e mesmo recuperação desse legado político e teórico), e pelas organizações partidárias pós 1979 a exemplo do PT e da esquerda do PMDB (que posteriormente vai se tornar PSDB). Diferentemente do Brasil, a Argentina não anulou o populismo de esquerda do peronismo (tendo como referência máxima John William Cooke), e por isso mesmo teve e ainda tem base de mobilização reativa ao projeto neoliberal e do fim dos direitos sociais. O mesmo pode ser dito do chavismo na Venezuela. Ao reproduzir a crítica uspiana ao PCB na defesa deste ao governo Jango e de suas reformas de base (que eram bem mais radicais se comparadas ao projeto implementado pelos governos Lula e Dilma) se equivoca historicamente ao citar Marighella. A posição crítica de Marighella só veio depois de 1964. A única organização comunista que defendia a derrubada do governo Jango era o PCdoB que posteriormente em agosto de 1964 fez autocrítica dessa posição equivocada no documento “O golpe de 1964 e seus ensinamentos”. E mesmo Marighella nos tempos de ALN não descartava a aliança com a burguesia nacional na derrubada da ditadura e na retomada de um projeto nacional popular. As únicas organizações que defendiam a revolução de caráter socialista eram a POLOP e o MR-8, enquanto as demais (incluindo o PCdoB) se posicionaram em defesa da etapa nacional popular.

Mas de fato há certas esquerdas que mataram o projeto da “esquerda tradicional” e vêm solapando a formação de um programa nacional popular para o confronto do projeto neofascista e neoliberal em curso no Brasil. Primeiramente é a chamada “esquerda identitária” que se limita às conquistas dos direitos civis, mas sem nenhum projeto de confronto direto ao projeto neoliberal e ao modo de produção capitalista. Esses grupos fartamente financiados nos últimos 30 anos pela Fundação Ford escolheram como alvo crítico principal o marxismo, e eivados de um discurso fortemente anticomunista. O problema para esses grupos não é o capitalismo em si, mas o “capitalismo branco” ou o “capitalismo patriarcal”, como se a solução fosse um “capitalismo preto” ou um “capitalismo matriarcal”. A defesa dos grupos marginalizados (e a defesa de suas identidades) pelo capitalismo e de sua verdadeira inserção social, econômica e política só poderá se efetivar por meio da articulação com os demais grupos opostos à política neofascista e neoliberal implantada pelo governo Bolsonaro num projeto comum. No mais é continuar lutando contra moinhos de vento à lá Don Quixote, sem efeito algum. Por isso, os movimentos feministas, movimentos negros e movimentos LGBT + precisam abrir cada vez mais diálogos e pautas em comum para a construção de um projeto nacional antineofascista e antineoliberal com os chamados movimentos da dita “esquerda tradicional”.

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Em segundo, a esquerda vinculada à tradição da Quarta Internacional tem mostrado uma agonia e descenso na última década. Isso ficou explícito diante a sua reação a um evento sobre Stalin na USP gerando manifestações contrárias, e mesmo censura. O seu mal estar diante do crescimento de uma nova geração de militantes que têm como referência o legado da Terceira Internacional nas figuras de Stalin e de Mao Zedong deve-se a seus próprios erros ao longo das últimas décadas. Sou de uma geração de militantes que se constituiu em grande adversidade a esse legado que optaram pelas teses trotskistas como também autonomistas e social-democratas. Defender a herança das conquistas soviética e chinesa era a própria heresia. Contudo, qual foi o resultado dessa perspectiva? Um somatório de erros e de derrotas do campo progressista e da vitória do que há mais de reacionário. A “grande vitória” da Quarta Internacional que foi a derrubada do regime socialista polonês liderada pelo “camarada” Lech Walesa por meio do Solidariedade resultou num enorme retrocesso político na Polônia ao impor o modelo neoliberal e construindo uma política de caráter xenófobo e ultra conservadora. Walesa já deixou bem explícito a sua posição racista e homofóbica em seus discursos. O mesmo diante o apoio à derrubada do regime de Kadafi pela OTAN e por mercenários no que resultou no fim da própria Líbia com direito ao retorno da escravidão (que inexistia nos tempos do governo Kadafi, sem falar no fim da liberdade religiosa e dos direitos das mulheres). Como se não bastasse isso, tivemos o remake desse apoio à OTAN na derrubada do governo sírio, como também à ultra-direita ucraniana, ao movimento reacionário de Hong Kong (com direito a desfile da bandeira dos EUA) contra o governo chinês, e da oposição conservadora venezuelana ao chavismo. Em defesa das massas? Não, na prática foi e tem sido a defesa do que há de pior no cenário político. O mesmo pode ser dito no “Fora Todos” que defendia a derrubada do governo Dilma – que a despeito de seus limites – não pode ser comparado nem de longe ao que se seguiu a partir de 2016 em nossa formação social. Certamente nem todas as organizações trotskistas tem compactuado com esse desastre, a exemplo do PCO e de alguns militantes, mas a maioria infelizmente está distante de um Jorge Abelardo Ramos. Por isso, essa nova geração emergente afinada com legado da Terceira Internacional e de seus acertos (obviamente também houve erros, mas quem não errou? Trotsky mesmo nunca foi exemplo de flexibilidade haja vista as críticas de Lenin a seu centralismo diante os sindicatos, sem falar na absurda tese da “Revolução Permanente” como se as diferentes formações sociais não tivessem contradições específicas e temporalidades distintas em suas estruturas) como a construção da URSS e de seu papel decisivo no confronto ao fascismo, como também do legado de Mao na China e nos movimentos de libertação nacional dos países coloniais e semicoloniais têm sido a referência por parte dessa juventude emergente. Se identificam com a vitória e com as conquistas obtidas no campo socialista, e não com o fracasso e com a associação aos movimentos conservadores e reacionários que se fazem presentes em diversas formações sociais, especialmente no Leste Europeu de hoje.

É essa esquerda com a qual Safatle deveria mirar a sua crítica e não com a esquerda que se pautou na constituição de movimentos que abranjam amplos setores da sociedade em suas múltiplas diversidades. A falha do PT foi a sua acomodação desde que ocupou os aparelhos de Estado e se afastando da mobilização popular, na contramão do exemplo venezuelano, e mesmo em relação da esquerda nacionalista pré 1964, lembrando que a iniciativa de não reagir e de usar os aparatos militares para neutralizar o golpe foi a de Jango e não a de Brizola. E se parte da esquerda mantiver essa posição de insistir cada vez mais em suas lutas fragmentadas isso resultará cada vez mais na cooptação de setores populares pela direita (em suas diversas correntes que abrangem desde os neopentecostais até “patrioteiros” neofascistas pró Bolsonaro e pró Trump, sem falar nos milicianos que expandem o seu poder territorial). Se queremos aprender com los hermanos argentinos em sua resistência ao projeto da direita para o continente, temos sim de recuperar esse legado para a formação de um projeto comum visando a recuperação do desenvolvimento nacional e dos direitos perdidos numa frente que comporte uma ampla pauta que se faça presente tanto nas redes sociais como nas ruas. Mas para isso o diagnóstico do fracasso tem de ser preciso, o que infelizmente não se fez presente no texto de Safatle.

Professor de Ciência Política da UFRJ e militante há 40 anos no campo da esquerda.

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