Abaixo o moralismo financeiro, por Luiz G. Belluzzo

As finanças não são uma deformação do sistema capitalista, mas a realização da sua natureza.

O sistema financeiro é a instância dominante nas relações econômicas do capitalismo de todos os tempos e em todos os tempos. Um sábio atilado chamou o dinheiro e suas instituições capitalistas de comunidade.

Na posteridade da Segunda Guerra, os sistemas financeiros foram severamente disciplinados. Salvo pequenos incidentes, a economia deslizou nos trilhos do crédito dirigido, dos controles de capitais entre os países, do gasto público amparado em sistemas fiscais progressivos. 

A coisa andou tão bem que, nos anos 1970, o sistema regulado de relações monetárias e financeiras sucumbiu ao seu próprio sucesso. As elevadas taxas de crescimento, salários reais colados aos aumentos de produtividade e sistemas de proteção social abrangentes impulsionaram a formação dos estoques de poupança (riqueza financeira) de ricos, remediados e até mesmo dos pobres. O enriquecimento social alentou o enriquecimento privado.

A massa de direitos sobre a riqueza e a renda resulta em rastros dos fluxos de produção realizados da renda criada. Nos ativos financeiros estão encarnadas as poupanças sacadas dos fluxos de renda pretéritos e é nesses ativos que vão encarnar-se as poupanças vindouras das famílias e das empresas. As avaliações desses ativos nos mercados financeiros são realizadas diariamente e afetam as decisões dos administradores desses recursos – bancos e demais instituições da finança.

Essas decisões se dilaceram entre partilhar o risco do investimento na produção socialmente útil e geradora de novos empregos e fugir para os escaninhos da valorização “autorreferida” dos ativos financeiros. Nos últimos 40 anos, esse jogo foi jogado nas regras do “nóis cum nóis”: fusões e aquisições, recompra de ações e pagamento de dividendos aos acionistas.

O desempenho das economias capitalistas justifica a indignação de muitos diante do aumento da desigualdade, da precarização dos empregos, para não falar da destruição dos sistemas de proteção social e da degradação das condições de vida das maiorias. A indignação é justa, mas quase sempre desconsidera a natureza constitutiva e contraditória do crédito e dos mercados de avaliação da riqueza no capitalismo.

As funções e disfunções do sistema financeiro global e de seu poder encontram guarida nas investigações pioneiras e originais de Marx, Keynes e Schumpeter. Análises amparadas em visões do capitalismo que privilegiam as relações estruturais e suas leis de movimento, ou, se quiserem, sua dinâmica.

Essas relações se transformam no propósito de permanecer as mesmas. As transformações devem garantir o propósito constitutivo desse sistema de relações: a acumulação de riqueza monetária. Em seu movimento de reprodução, as estruturas metamorfoseiam seus modos de manifestação e práticas operacionais. Hyman Minsky escrevia em 1986: “No mundo de homens de negócios e de intermediários financeiros que buscam agressivamente o lucro, a inovação sempre vai suplantar a vigilância dos reguladores; as autoridades não podem prevenir mudanças na estrutura dos portfólios.

O que elas podem é impor exigências de capital para os vários tipos de ativos. Se as autoridades impõem tais restrições aos bancos de depósito e estão atentas aos ‘quase-bancos’, bem como a outras instituições financeiras, estarão em condições de atenuar as ‘tendências destrutivas da economia’”.

A indignação e o moralismo não podem substituir a amargura e a dureza das investigações sistêmicas e sistemáticas. Sim, o sistema financeiro não é uma deformação do capitalismo. É a realização de sua natureza. Quando deixam o bicho solto, ele sai fazendo das suas. É preciso botar a alimária de volta à jaula. Mas antes temos de curar as feridas dos que foram machucados por ele, sobretudo os menos favorecidos.

Quando ocorre uma ruptura dos nexos monetários, como a observada agora, a reconstrução exige coordenação centralizada para impedir a desvalorização brutal da riqueza: a derrocada invade as Bolsas de Valores e envereda pelos mercados incumbidos de avaliar os ativos de dívida que lastreiam as aplicações dos ricos, remediados e pobres. É uma totalidade, um transatlântico que vai afogar os de cima e os que estão embaixo.

A ira moralista é o avesso do fervor livre-mercadista, assim como o moralismo midiático e internético de nosso tempo é a outra face da amoralidade das formas de dominação incrustadas na sociedade de massa contemporânea. Nela, mostrou Hannah Arendt, o indivíduo desarraigado e sem rumo é manipulado e abusado por slogans simplificadores. Os dois estados de espírito, a ira e a crença cega, alternam-se na alma dos bons cidadãos. Um e outro impedem a compreensão da ruptura das formas econômicas e das relações sociais que assolam a crise atual.

Fonte: CartaCapital

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