Eleições EUA: Democratas caem novamente na armadilha de Trump

O atual presidente está tentando fazer com que a política dos EUA retome os debates anteriores à pandemia, enquanto os Democratas parecem não saber exatamente como responder.

O ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, vem a público durante a pandemia para explicar por que razões Donald Trump é ruim para o país. E isso faz com que os apoiadores do atual presidente se lembrem dos motivos que os levaram a crer que ele é, na verdade, o oposto.

Desde que deixou o cargo, raras foram as vezes em que Obama entrou em debates a respeito de seu sucessor, mas a postura de Trump durante a pandemia o fez elevar o tom de voz. Mais direto do que costuma ser, Obama inicialmente definiu o atual governo como “um desastroso e absoluto caos”, durante uma videoconferência com ex-assessores. Depois, foi mais discreto num discurso de formatura, também por vídeo, no qual não mencionou o nome de Trump, mas afirmou que valores egoístas e míopes “explicam por que as coisas vão tão mal”. Trump respondeu como sempre, relembrando o “obamagate” e dizendo que seu antecessor foi “grosseiramente incompetente”.

Depois, destacando o que ele vê como óbvias falhas de Trump, Obama jogou luzes em algo menos óbvio a respeito de Trump: o atual presidente agiu para que a política dos EUA fosse o primeiro espaço público da vida nacional a retornar a um cenário que possa ser descrito como normal.

As universidades ainda estão fechadas – e talvez continuem assim por meses. A maioria das pessoas não se sente confiante para visitar seus parentes. Jogos de beisebol ainda não têm previsão de retorno. Mas a cultura política retornou para algo próximo do que ela era antes da pandemia.

As pessoas estão cheias de ressentimento em relação a seus compatriotas. Elas estão com frequência criticando a hipocrisia de seus oponentes. Acima de tudo isso, muitas vozes influentes, de ideologias distintas, estão unidas no propósito de é necessário pensar e falar a respeito de Trump.

É aqui que encontramos a essência da armadilha de Trump. Para seus críticos, não rebater suas provocações poderia ser interpretado como cumplicidade ou covardia. Enfrentá-lo, no entanto, dá a essas provocações de Trump a centralidade que ele necessita para que sua tática funcione. É um velho fenômeno. O que é novo é a presente pandemia, que por um tempo pareceu tornar obsoleta a política de Trump, mas o que se vê hoje é a capacidade de adaptação de seu discurso. Seu antecessor imediato, assim como outros Democratas e boa parte da mídia, apenas ratifica essa percepção.

O retorno de Obama à cena política neste mês é um bom momento para entendermos certa dinâmica normalmente subestimada dos anos Trump.

À primeira vista, é como se dois líderes políticos poderosos, com grandes seguidores, expressassem seu desdém um pelo outro em termos mais ou menos iguais. Mas a natureza da  lealdade e carinho dos apoiadores de Obama é muito diferente da relação de Trump com seus apoiadores. Essa diferença é fundamental para a questão mais importante da política de 2020: Trump pode sobreviver à pandemia e à perturbação surpreendente que causou na economia e na rotina da vida cotidiana?

Muitas pessoas que admiram Obama, parece claro, o fazem em termos absolutos. Para essas pessoas, seu estilo e caráter representam virtudes que o aproximam de um modelo ideal para todos os presidentes. Ele é progressista, muito embora não tanto quanto seus admiradores gostariam. Ele valoriza a racionalidade e a contenção, um pouco mais do que muitos partidários desejariam – e é sem dúvida uma figura elegante e inspiradora em uma era deselegante e cínica. Essas virtudes, sob esse ponto de vista, não dependem principalmente do contexto, mas sim de quem são seus oponentes ou de quais circunstâncias externas ele está enfrentando.

Pela minha experiência, muitas pessoas que admiram Trump o fazem em termos relativos. O contexto define tudo. Sim, as pessoas dizem, Trump é grosseiro e briguento, muitas vezes ultrajante. Não, esse não é o comportamento ideal de um presidente. Mas não vivemos tempos ideais e isso faz de Trump um grande líder para este período particular. Ele enfrenta as instituições (partidos, mídia, Congresso) que não compactuam com seus valores. Ele ofende gratuitamente seus opositores. Ele não é entediante e está longe de ter medo.

Diz-se com frequência que a forma de Trump fazer política exige que ele identifique inimigos – as pessoas querem ver quem são seus opositores. O que normalmente se esquece é que esse tipo de política também demanda que as outras pessoas o identifiquem como inimigo. Nunca faltaram voluntários para esse papel e ninguém mais prestigioso que um ex-presidente tão respeitado poderia vir a público neste momento. Os Democratas ficaram satisfeitos ao ouvir as palavras de condenação de Obama, mas Trump certamente ficou ainda mais satisfeito.

A tréplica a tudo isso é óbvia: quem se importa? Qual a relevância das queixas de Trump e de possíveis teorias da conspiração no meio de uma pandemia? O que há de certo a ser respondido é: Trump está fazendo um bom trabalho diante da crise? Na sequência, deve vir outra questão: está fazendo um bom ou mau trabalho de acordo com quem?

Trump sabe que a probabilidade de um número suficiente grande de pessoas dizer que ele está fazendo um trabalho ao menos aceitável durante a pandemia é proporcional à avaliação negativa que certa parte da população pensa a esse respeito.

Os Democratas acreditam que a pandemia e a resposta tardia e errática de Trump serão sua ruína. Há pesquisas para reforçar esse ponto de vista. Mas o que pesa contra a esperança é a experiência. Os Democratas ainda esperam algo (mesmo depois das revelações sobre a Ucrânia em 2019) para dizer que “agora Trump foi longe demais”. Há, no entanto, evidências de que aquilo que para muitos são ações ruins de Trump, para outros são características que o tornam benquisto. Mesmo assim, existe em muitas regiões do país uma crença por meio da qual algum dia uma pessoa vai encontrar as palavras certas para perfurar o movimento político liderado por Trump.

Obama certamente entende a armadilha de Trump. Da mesma forma, ele provavelmente crê que, em algum momento, os líderes políticos correm o risco de perder sua autoridade moral e de reivindicar a atenção do público, caso não digam o que pensam. Nancy Pelosi também entendeu a armadilha de Trump. Os Democratas venceram as eleições de 2018 enfatizando a necessidade de reformas no sistema de saúde e as denúncias contra Trump. Mas ela também sabe que a armadilha é dura de resistir, como demonstrado em sua explicação sobre por que falou da obesidade do presidente, “dando-lhe uma dose de seu próprio remédio”. O candidato dos Democratas, Joe Biden, também zombou de seu rival chamando-o de “presidente tweet”, mas em geral evita igualar seu discurso ao do seu oponente.

O último exemplo desse tipo de tumulto ocorreu na semana passada, quando Trump afirmou que está tomando comprimidos de cloroquina para se proteger da Covid-19. Se Trump realmente estiver fazendo uso do remédio, algo que muitos criticam, para outros essa talvez não seja uma má ideia. Sejamos honestos: as pessoas que se dizem ultrajadas pelo comportamento de Trump se ofendem por si mesmas, não pelas demais. Ele ofende a inteligência daqueles que gostariam que Trump agisse como um presidente, com cautela e ouvindo os devidos especialistas. E é exatamente por isso que ele toma a droga (ou assim o diz).

Nos últimos dias, Trump sugeriu que Biden está senil, atacou os governadores que se recusam a encerrar a quarentena, ofendeu um jornalista e envolveu um deputado num homicídio de 20 anos atrás, sem que o acusado tenha qualquer tipo de referência ao caso.

A enxurrada de acusações não reflete a postura de alguém que esteja confiante em sua postura política. Mas isso não quer dizer que Trump tenha perdido seu autocontrole, ou que não tenha ideia do que está fazendo. Ele está tentando fazer a política dos EUA voltar ao normal (ao menos dentro de sua compreensão do que é “normal”). De algum modo, ele sabe que sua tática está funcionando.

Tradução e edição: Fernando Damasceno