Por que não comemorar o Marco Regulatório do Saneamento Básico?

A aprovação pelo Senado do PL 4162/2019 e sua eventual sanção pelo Presidente, abre precedente para que a prestação de serviços públicos de saneamento, que são de natureza social e essencial, sejam concedidos à iniciativa privada, sem fornecer os meios para o exercício do controle social sobre a prestação destes serviços.

Cobertura de 99% do fornecimento de água potável e 90% de coleta e tratamento de esgoto até 2033. Essas são as metas definidas no Marco Regulatório do Saneamento Básico, aprovado essa semana pelo Senado. Atualmente, cerca de 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto e 34 milhões, sequer à água tratada. Esses números mostram o abismo social no Brasil, e acarretam, anualmente, gastos de 140 milhões de reais ao Sistema Único de Saúde. Por que então não comemorar?

A aprovação pelo Senado do PL 4162/2019 e sua eventual sanção pelo Presidente, o que deve acontecer, invariavelmente, abre precedente para que a prestação de serviços públicos de saneamento, que são de natureza social e essencial, sejam concedidos à iniciativa privada sob um regramento que, ainda que técnica e conceitualmente consistentes, nos parece falho na medida em que não fornece os meios para o exercício do controle social sobre a prestação destes serviços.

É notório que existe a necessidade de melhoria da estrutura pública de prestação de serviços de saneamento, tanto na qualidade quanto na abrangência, sendo estas as principais justificativas para apresentação do PL, mas sua privatização não é propriamente a melhor saída em se tratando de serviços que são prestados em caráter de monopólio. O argumento clássico da defesa das privatizações prega que a virtude do mercado na provisão de bens e serviços está na competição que, ao acirrar a disputa pelas vontades dos consumidores, induz à eficiência e racionalização. Mas, como justificar essa virtude para situações em que não há concorrência?

Serviços prestados em regime de monopólio são de interesse público, e já temos experiência pregressa em concessões desse tipo e o modo pelo qual sua administração de modo privado por vezes conflita com o interesse público, notadamente em função da qualidade do serviço prestado em relação ao seu custo. Exemplo claro disso são as concessões de transportes e de rodovias, que também são monopolizados e padecem pela falta de transparência, tarifas sem controle social, preços abusivos etc.

Tendo em vista esse ponto, a privatização não necessariamente assegura a universalização do serviço, e tende a gerar aumento nos custos ao consumidor e consequente ampliação da exclusão social. Isso porque o objetivo, oposto à democratização dos recursos, é a maximização dos lucros. Como garantir então que, regiões de fato carentes e que exigem grandes aportes de investimento para ter acesso à água e ao tratamento de esgoto, sejam vislumbradas por empresas que não tem como objetivo o bem estar comum? Como garantir que o valor dos serviços de saneamento não suba vertiginosamente impactando de forma agressiva a população mais pobre?

Podemos buscar exemplos fora do Brasil: há uma tendência mundial de reestatização do setor. Ao contrário do que esperavam países como Alemanha, França, Argentina, entre outros, não houve melhora na qualidade dos serviços e redução da desigualdade social. Porém, o que foi observado foram serviços ineficientes e com baixo volume de investimento privado, aumento de custos ao consumidor e consequente aumento da desigualdade, o que fez com que, desde 2009, houvesse uma onda de reestatização de empresas de saneamento em mais de 37 países.

Situação similar pode ser observada também aqui a partir de informações da Agência Senado. Como podemos ver no gráfico a seguir, a iniciativa privada apresenta, claramente, desempenho aquém do setor público nos Sistemas de Saneamento Básico. A perda de água é maior no setor privado, enquanto os investimentos em saneamento são maiores no setor público. Apesar disso, as tarifas são maiores na iniciativa privada.

A rigor, o grande vício do PL está no fato de não apresentar sistema de contrapesos para equilibrar a assimetria de poder e representatividade entre o ente detentor de capital – que prestará o serviço e que tem por interesse o retorno do seu investimento – e o conjunto difuso de cidadãos comuns e usuários que consomem ou recebem o serviço – que tem por interesse sua qualidade ao menor custo. No que se refere à regulação e fiscalização, esta é remetida a agências reguladoras a serem criadas, dentre as quais os titulares dos serviços deverão escolher a qual submeter a vigília sobre os serviços prestados, o que tende a significar, na prática, uma forma de encastelamento dos interesses da parte assimetricamente mais forte dentro da redoma da burocracia.

Não há incentivo ou mesmo previsão de meios para o exercício do controle difuso e descentralizado, não que o papel das agências reguladoras não seja necessário, mas por si só, não são suficientes, visto que cria relação de clientelismo. Não se fala em conselhos locais, paridade, participação popular ou social, expressões que nem sequer aparecem no PL. Essa é a grande questão: como assegurar que os serviços sejam prestados a custos acessíveis (até de forma subsidiada, para quem não pode pagar) e de forma universalizada em uma situação em que há conflito de interesses iminente? Essas questões não são resolvidas no projeto de lei.

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