Eu preciso, eu decido: Iniciativas promovem autonomia das periferias

Por meio de ações de transferência de renda, famílias compram o que precisam. Opção garante autonomia, sem o caráter assistencialista das doações.

Projeto Mães da Favela - Foto: Reprodução/Facebook

Com a pandemia do novo coronavírus, milhões de brasileiros perderam o emprego ou ficaram impedidos de exercer atividades que eram sua fonte de renda. Para seguir em frente, muitas dessas pessoas têm contado com as próprias comunidades onde vivem, que arrecadam e organizam a doação de itens como alimentos e gás de cozinha, a chamada autogestão. Mas, na esteira de ações como essas – que são fundamentais – vem surgindo a discussão sobre a autonomia de quem recebe.

Existe uma ideia de que quem está nas periferias recebendo alguma forma de ajuda é um ente frágil e necessitado. Por estarem necessitados, deveriam se contentar com o básico. No entanto, mais uma vez, é a própria periferia que está se organizando para dizer que as coisas não são assim. São cada vez mais comuns iniciativas para garantir às famílias poder de decisão sobre suas necessidades.

As donas da renda

Foi nesse contexto, por exemplo, que há três meses surgiu o projeto Mães na Favela, da Central Única das Favelas (Cufa), que destina R$ 120 para que as chefes de família gastem como quiserem.

“A gente entende que as mães são as responsáveis pela divisão da renda na favela. São elas que sabem o que precisa dentro de casa, se é o alimento, o gás, um remédio”, explica Bruno Kesseler, presidente da Cufa no Distrito Federal.

De acordo com Bruno, a importância da iniciativa está em reconhecer essas mães como agentes aptas a decidir. “A gente está doando cesta básica também. Mas, nesse projeto, ela [chefe de família] tem autonomia de escolher o que ela mais precisa naquele momento”.

As participantes podem contar com a renda por dois meses. O programa selecionou cerca de 40 mil mães no país. A entrega da renda é por meio de um cartão, em parceria com a empresa Pic Pay. No entanto, a iniciativa depende de doações. Para saber mais e ajudar, basta acessar o site www.maesdafavela.com.br (nacional) ou www.cufadf.com.br (doações para o Distrito Federal).

Mulheres recebem renda de R$ 120 por dois meses – Foto: Cufa/Sergipe

Além do básico

Também em busca de autonomia, nasceu o projeto Cesta Ampla, em Samambaia, cidade a cerca de 30 quilômetros de Brasília. O nome remete, propositalmente, a uma comparação com a cesta básica, evidenciando a intenção de ir além. Assim como o Mães na Favela, a proposta é assegurar poder de escolha às famílias que participam, por meio da transferência de renda.

“Geralmente [a cesta básica] é padrão, aquela cesta com arroz, macarrão, feijão. Muitas vezes as famílias que recebiam diziam ‘Ah, isso eu não vou usar’ ou ‘Eu nunca uso esse fubá, nunca uso esse macarrão, que é da pior qualidade’. E já vi criticarem essas pessoas dizendo ‘Ah, tá ganhando e tá achando ruim’. Não é porque a pessoa está ganhando que ela tem que achar bom”, comenta Cauan Felipe Amorim, diretor-executivo da ONG CE Rugby Samambaia, que busca melhorar as perspectivas de jovens da periferia através do esporte e está à frente do projeto Cesta Ampla.

Com base em vivências desse tipo, a ONG desenvolveu o programa durante a pandemia, inicialmente para atender 50 famílias de Samambaia com um auxílio de R$ 150 mensais durante três meses. O dinheiro pode ser gasto em uma plataforma online com comerciantes locais, de forma a movimentar a economia da comunidade e ajudar pequenos empresários, duramente atingidos pela pandemia. Na plataforma, há opções que vão de crédito para o celular a remédios e cópia de chave.

A campanha começou no último dia 15 e também depende de doações para ir adiante. Segundo Cauan, a meta para contemplar as primeiras famílias selecionadas é arrecadar R$ 20 mil. As doações podem ser feitas acessando o endereço www.cestaampla.org.br/apoie.

Trecho de vídeo da campanha Cesta Ampla: Quem escolhe pela periferia? – Imagem: Reprodução

Liberdade e direitos

Segundo Ieda Castro, ex-secretária Nacional de Assistência Social e doutora em Política Social pela Universidade de Brasília (UnB), esse tipo de iniciativa está em consonância com a Lei Orgânica da Assistência Social e com a Lei n° 11.435/2011, que criou o Sistema Único de Política Social (SUAS). “As duas preveem que benefícios podem ser concedidos sob forma de pecúnia [dinheiro]. Na lei do SUAS, vale para auxílio-funeral, auxílio-maternidade e auxílio de emergência”, destaca.

De acordo com Ieda, as políticas de transferência de renda são benéficas por tirarem o caráter assistencial das doações e dotarem as pessoas de liberdade. “O auxílio financeiro é uma provisão, enquanto a doação tem uma dimensão caritativa. Na dimensão do Direito, você precisa dar ao sujeito a autonomia para fazer escolhas. Todo benefício assistencial deveria ser em pecúnia”, diz.

A ex-secretária afirma, no entanto, que a cultura assistencialista é difícil de romper. “A política assistencialista ainda é organizada em forma de doações, pois há por trás toda uma cultura do clientelismo. Cria-se uma desigualdade entre quem recebe e quem doa. Essa é a pior forma de auxílio”, avalia. Mas Ieda ressalta que há iniciativas bem-sucedidas, como o Bolsa Família.

“Na verdade, o Bolsa Família já foi tentando criar uma cultura de cidadania. Se criou um valor financeiro e se passou para a família para atender às suas necessidades. Que podem ser necessidades básicas ou cultura, lazer. Às vezes, a pessoa tem o básico, mas não tem o financeiro para acessar outros bens de consumo”, comenta ela, que cita ainda o auxílio emergencial durante a pandemia e a discussão sobre a implementação de uma renda básica universal no país.

Publicado originalmente em Samamba Lights.

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