Perspectiva palestina sobre a controvérsia com a atriz Maxine Peake

Por que ninguém pergunta a nós, aos palestinos, o que pensamos? O escritor e dramaturgo palestino Ahmed Masoud apresenta a sua perspectiva sobre a controvérsia que envolveu a atriz britânica Maxine Peake.

Vivemos tempos de políticas burras, de políticos de direita imbecis, cuja ignorância acerca do mundo e falta de empatia para com outras culturas estão para além do ridículo. No entanto, eles se dão bem, tanto que se elegem presidentes dos EUA ou primeiros-ministros do RU, podendo inclusive se reelegerem.

Porém, quando uma atriz de renome como Maxine Peake, em entrevista para conhecido jornal britânico, se equivoca acerca de um detalhe sobre a cooperação de treinamento militar entre o estado de Israel e as forças policiais estadunidenses (entenda a controvérsia em adendo ao fim deste artigo), aí a opinião pública se sente ultrajada, a ponto de a ministra de Educação da oposição – a trabalhista Rebecca Long-Bailey – acabar demitida por haver retuitado a polêmica afirmação de Peake.

Mas de onde vem essa pressão toda? Estará acaso Israel acima de escrutínio e críticas? E mais importante ainda, se consideramos que a afirmação de Peake tem a ver com a natureza global do racismo e da violência sistêmicos, por que ninguém pergunta a nós, aos palestinos, o que “nós” pensamos? E se “nossos” pescoços, por acaso, não estão sendo também apertados pelas impiedosas botas israelenses?

Não sou jornalista nem advogado. Não estou aqui para discutir se os policiais que mataram George Floyd aprenderam ou não com instrutores israelenses a técnica precisa de como colocar seus joelhos no pescoço das pessoas. Não se trata desse detalhe sobre o qual Maxine se equivocou e do qual imediatamente se retratou, desculpando-se. Não nos esqueçamos de que há abundante pesquisa documental – Channel 4, Anistia Internacional, etc. – sobre a extensa colaboração referente a treinamento de “segurança” entre EUA e Israel.

Na verdade, estou aqui antes para falar sobre o que me parece uma evidente injustiça, isto é, sobre como alguém como Peake – uma pessoa que tem a vida toda participado de campanhas pela igualdade em todas as frentes – é acusada injuriosamente de antissemita. Esse é o ponto.

Ora, eu conheço essa mulher admirável, pois trabalhei com ela em várias ocasiões. Se há quem acredite em direitos humanos, esse alguém é Maxine. Ela sempre esteve do lado dos oprimidos em qualquer canto deste mundo. Esteve sempre do lado da justiça, junto daqueles que lutam por dignidade e igualdade. Maxine fez uma afirmação sobre o “estado” de Israel, e – tenha ela se enganado num detalhe ou não – estado nenhum deveria colocar-se acima de críticas.

Aliás, é sabido que Israel planeja em alguns dias anexar ilegalmente amplas partes de território palestino, tornando impossível a existência de um estado Palestino no futuro. Mas por que falar nisso? Não vem ao caso, não é mesmo? Não falemos de Eyad El Hallaq, um jovem palestino autista de 32 anos de idade, morto a tiros pela guarda israelense em maio passado, poucos dias depois de George Floyd ter sido morto. Não falemos de Ahmed Erekat, morto também a tiros em junho agora, quando se dirigia para o casamento de sua irmã. Não falemos sobre o fato de, ainda agora em junho, a população civil de Gaza ter sido bombardeada a noite inteira (pela zilhonésima vez!). Não falemos sobre o fato de haver entre Gaza e o estado de Israel 17 postos de controle de fronteira, e apenas um deles funcionar, e ainda com severas restrições. Não falemos sobre o fato de Israel não permitir que os palestinos tenham um aeroporto ou um porto marítimo. Não falemos sobre o fato de os palestinos não termos controle sobre nossas próprias fronteiras, de não nos permitirem ter acesso a nossa própria água, de não podermos livremente assinar tratados comerciais, de o exército israelense poder invadir (sim, invadir) qualquer casa palestina a qualquer hora do dia ou da noite.

Sim, claro, vamos antes manter o foco sobre o exato ângulo do joelho do policial e onde essa técnica foi mesmo aprendida.

Talvez, ao ler este artigo, alguém detecte nele uma palavra imprecisa e, moto contínuo, procure usar isso contra mim também, visto eu estar ao lado de Maxine defendendo a justiça para meu povo. Pouco me importa. O fato é que não posso silenciar-me enquanto a verdade é distorcida. Não consigo apenas assistir mudo quando pessoas inocentes são caluniadas de racistas. Meu pai uma vez me disse: “Você não pode argumentar com o homem branco, porque ele já decidiu que você não é humano o bastante para poder argumentar. Você não pode apelar para sua humanidade, porque ele não vê você como seu próximo, como um ser humano igual a ele”. Hoje eu vejo isso mais do que nunca e compreendo o que meu pai quis dizer.

É tudo um jogo de poder, e o objetivo é tornar-nos (os oprimidos e as pessoas que os defendemos) “culpados”. Maxine, a atriz antirracista, passou agora então a ser “antissemita”, e os palestinos sob violenta ocupação por décadas são “terroristas”. Eis a narrativa invertida dos fortes e paranoicos. Enquanto isso, nos EUA, para os que detêm o poder, estão errados e são violentos os que protestam nas ruas, e não a polícia que atira neles.

Deixem-me, pois, reiterar ainda uma vez: criticar Israel não é antissemitismo! Quando criticamos Israel, referimo-nos a um “estado” – um conceito bastante recente – e a seu sistema político; não nos referimos ao povo que vive dentro das fronteiras desse estado. Quando, por exemplo, alguém critica as ações da Rússia ou da Austrália, obviamente não se deve entender que esteja criticando cada um dos russos ou australianos no país ou no mundo. Do mesmo modo, quando criticamos Israel, referimo-nos a um sistema político, em particular aquele que vem cometendo crimes contra os palestinos sob sua ocupação por décadas; não nos referimos, obviamente, a cada um dos israelenses, muito menos a cada judeu, mundo afora. 

Não conheço o novo líder trabalhista britânico, Keir Starmer, mas não tenho dúvidas de que a demissão de Rebecca Long-Bailey tenha tido mais a ver com a consolidação de sua autoridade, isto é, do poder que ele quer estabelecer no partido e para a comunidade em geral do que propriamente com qualquer risco de antissemitismo real. É claramente a perspectiva de tornar-se primeiro-ministro nos próximos cinco anos que motivou a atitude do novo líder trabalhista, e não uma genuína preocupação pelas vítimas de racismo e preconceito. Se assim agem os trabalhistas, o que esperar dos demais? Infelizmente, isso nos dá a entender que o tema permanecerá conosco por bom tempo ainda. Caso não se torne ainda pior…

Como um escritor palestino, sigo firme ao lado de Maxine e de Rebecca. Agradeço a essas mulheres fortes por seu empenho pelos direitos humanos em geral e faço votos para que continuem seu extraordinário trabalho, não permitindo que difamações e ataques baixos a suas pessoas lhes quebrem as altivas determinações. Quero que saibam que minha voz, assim como aquela de todos os oprimidos, está com elas. Agradeço aos nossos companheiros de luta, o pessoal do movimento “Vidas Negras Importam” no RU, por haverem rejeitado essa distorção da verdade, e espero que todos e todas que leiam este texto a rejeitem também.

PARA ENTENDER A CONTROVÉRSIA: A atriz Maxine Peake, em entrevista ao jornal britânico The Independent (25-06-2020), afirmou que os policiais estadunidenses teriam aprendido a técnica do joelho no pescoço com o serviço secreto israelense. Imediatamente, um porta-voz do serviço secreto israelense negou a veracidade da informação, e o Independent adicionou uma nota ao final da entrevista, tirando o corpo fora, afirmando não haver evidências de que a informação fosse de fato real. A seguir, a própria atriz, em seu Twitter (25-06-2020), a fim de evitar “colocar mais lenha na fogueira do racismo e antissemitismo”, retratou-se, reconhecendo a imprecisão de sua afirmação. Mas a coisa não terminou aí. O líder da oposição, o trabalhista Keir Starmer, demitiu Rebecca Long-Bailey de seu posto de ministra da Educação por haver retuitado a polêmica afirmação de Maxine Peake. Como é sabido, na política britânica, a oposição (ou seja, o partido que não está no governo) forma as pastas ministeriais todas (seu “gabinete”), de onde pode acompanhar e criticar o governo eleito. A esse “gabinete” não eleito assim composto se denomina “shadow” ( = sombra). Rebecca Long-Bailey era ministra “shadow”, e deste cargo foi demitida. 

Fonte: New in Ceasefire/Tradução: Conrado Abreu Chagas

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