Livro analisa a dinâmica político-partidária no Estado de São Paulo

Livro lançado pela Editora da Unicamp desvenda o funcionamento dos partidos e revela as características da política paulista

Luíz Inácio Lula da Silva (PT) e José Serra (PSDB) durante evento em 2010 : A partir de 1994 e até 2014, PSDB e PT passaram a protagonizar as competições para o governo

Em agosto, a Editora da Unicamp lançou o livro Política em São Paulo: Uma análise da dinâmica político-partidária no estado. A obra foi organizada pelas doutoras em Ciências Sociais Rachel Meneguello e Maria Teresa Miceli Kerbauy. Ambas possuem longa experiência em estudos sobre partidos políticos, democracia e sistemas eleitorais, além de trabalharem juntas em outras pesquisas desde 2002.

O livro, composto por 12 estudos, reúne trabalhos desenvolvidos no projeto “Organização da política representativa em São Paulo”, realizado entre os anos de 2013 e 2018 com o apoio da Fapesp. Dois desafios guiaram todos os estudos: o primeiro desafio foi demonstrar que partidos políticos continuam sendo instituições com capacidade representativa, possuem organização interna, formam quadros e têm importância junto ao eleitorado. O segundo, foi descrever as características da política paulista, contemplando a organização dos partidos no estado, assim como os efeitos da dinâmica eleitoral na definição de posicionamentos e de padrões de votação.

São Paulo, um denso território político, com enorme complexidade estrutural, demográfica e socioeconômica e que conta com a presença de todos os partidos registrados no país, possui uma dinâmica partidária altamente fragmentada no âmbito dos municípios, enquanto convive com a hegemonia de um só partido no governo estadual. O livro procura demonstrar, por meio de dados de pesquisas com filiados e militantes de vários partidos, como essa dinâmica se estrutura e se apresenta.

Rachel Meneguello detalhou alguns pontos interessantes de Política em São Paulo:

O que guiou a seleção dos textos que compõem Política em São Paulo?

Rachel Meneguello: Os capítulos focalizam as principais dimensões para a compreensão da política paulista desde o início da democratização até 2016. Partidos políticos, eleições e poder legislativo são os três eixos que desdobramos em pesquisas com enfoques variados, todos com abordagem empírica sustentada por pesquisas de campo e dados oficiais. Os temas versam sobre a estruturação do sistema partidário e o funcionamento interno dos partidos, a estruturação das preferências políticas e o comportamento eleitoral em nível local, as características dos legislativos municipais e a dinâmica do legislativo estadual. Ainda sobre os partidos, estudamos a hegemonia do PSDB no governo paulista, com vitórias em sete pleitos consecutivos, e o declínio da trajetória eleitoral dos partidos conservadores nesse período. Também abordamos aspectos da presença dos setores evangélicos nas principais agremiações e a sua atuação no legislativo estadual.

O livro apresenta o estado de São Paulo como um local de ampla presença de siglas partidárias e berço dos dois partidos que conduziram a política democrática nacional nos últimos anos, o PT e o PSDB. Como isso está relacionado com a dinâmica eleitoral do próprio estado e do Brasil como um todo?

Rachel Meneguello: Esse é um dos aspectos singulares da política paulista. São Paulo é um terreno político de enorme competitividade, os 35 partidos registrados no país têm algum grau de organização no estado e, além disso, possibilita uma competição vigorosa, que dá acesso a cargos para 6974 vereadores, 645 prefeitos, 94 deputados estaduais e 70 deputados federais. No entanto, são poucas as siglas que estruturam o voto, colocando obstáculos à fragmentação que o sistema possibilita. Por sua vez, na competição para o governo, entre 1986 e 1994, o PMDB, tendo Quércia como principal liderança, o PDS (depois renomeado PP) de Paulo Maluf, e o PT, foram as principais forças da competição estadual. A partir de 1994 e até 2014, PSDB e PT passaram a protagonizar as competições para o governo, um reflexo claro da dinâmica política nacional. Mas é um dado fundamental que não apenas as origens desses dois partidos foram concentradas no estado, mas também as suas principais lideranças. Essa é uma dinâmica que se retroalimenta e, em parte, colabora para explicar a longa permanência do PSDB no governo do estado. Como mostram os estudos sobre o PSDB apresentados no livro, embora as disputas para o governo tivessem os mesmo dois protagonistas atuantes no âmbito nacional, em que PT e PSDB ocuparam a presidência no período, em São Paulo, a vantagem eleitoral do PSDB sobre o PT foi muito significativa em quase todas as eleições.

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Professoras Rachel Meneguello e Maria Teresa Miceli Kerbauy (no destaque): Ambas possuem longa experiência em estudos sobre partidos políticos, democracia e sistemas eleitorais

Um dos principais assuntos do livro é a longa sequência de governos estaduais do PSDB. O que esse sucesso eleitoral revela sobre as características tanto do eleitorado quanto dos candidatos?

Rachel Meneguello: Esse sucesso explica-se sobretudo pela organização do partido em todo o território estadual. Desde seus primeiros anos de atuação eleitoral, o PSDB consegue obter parcela significativa dos votos do eleitorado, em boa medida herdados da base eleitoral do PMDB, de quem também herdou lideranças, quadros partidários e prefeituras. Mas, ao longo do tempo, o fortalecimento da organização pode ser visto pelo alto número de candidatos lançados em eleições, pela forte coordenação eleitoral em todos os níveis de eleição e pela constituição de redutos eleitorais em um cenário partidário fortemente fragmentado.

O sucesso do partido no nível municipal é notável. A partir de 1996 o PSDB passa a conquistar em média 25% a 30% dos municípios em todas as eleições locais, lembrando que nesse período há, ao menos, 30 legendas concorrendo no estado. O PSDB não apenas conquistou muitas das prefeituras antes ocupadas pelo PMDB, mas foi avançando para municípios ocupados anteriormente por outras legendas, chegando inclusive a ingressar, na eleição municipal de 2016, na região do ABCD paulista, área considerada importante reduto eleitoral do PT no estado.

A longa presença do partido no governo explica também esse sucesso. A ocupação de cargos, o uso dos recursos políticos próprios da relação do governo com os municípios e a aproximação do partido com a máquina estatal, observada, por exemplo, nos cargos comissionados, são fatores preponderantes para explicar a força da organização.

Um dos textos do livro, intitulado “Trajetória e desempenho da direita partidária em São Paulo”, trata do declínio dos partidos de direita no estado. A atual onda conservadora pode ser considerada um novo capítulo dessa trajetória?

Rachel Meneguello: O livro aborda a trajetória descendente dos partidos de direita, e mostra como as legendas foram perdendo capilaridade no nível local no período estudado. Partidos mais fortes, como o PP e o DEM, foram perdendo espaço para siglas com maior capacidade de penetração de suas bases partidárias, como o PMDB e o PSDB. Além disso, ainda se observa no período até 2016, o crescimento de legendas à esquerda, como o PSB.

A nova onda conservadora vem com as mudanças da política nacional que levaram à vitória do PSL em 2018 para a Presidência da República, e que também tiveram impacto na organização política do estado de São Paulo. Na eleição para o governo paulista, a campanha eleitoral do PSDB acoplou-se ao bolsonarismo, levando para a direita a principal tendência política do estado que se consolidara historicamente pelo centro. A vitória do PSDB no segundo turno por pouco mais de 3 pontos percentuais sobre o PSB traduziu a forte polarização a que foram levadas as preferências políticas no estado, resultante de uma campanha que recuperou a retórica ultrapassada do combate ao comunismo e deu espaço para segmentos apoiadores da ditadura militar, traduzindo a dinâmica imposta pela campanha vitoriosa à presidência de Jair Bolsonaro. A ascensão do PSL no estado, com a eleição da maior bancada na Assembleia Legislativa e do maior número de deputados federais eleitos por São Paulo levou ao enfraquecimento, sobretudo, do próprio PSDB, que viu uma diminuição significativa de suas bancadas. É possível que a atual onda conservadora altere os vetores que conduzem a política local paulista, mas só teremos dimensão da capacidade organizativa dessa onda com os resultados das eleições municipais de 2020.

O livro procura mostrar os partidos políticos como instituições ativas no dia a dia e não como “ficções legais” de mera função eleitoral. O que pode e deve ser dito para que o leitor entenda a importância dos partidos políticos dentro de um sistema democrático?

Rachel Meneguello: O livro rebate o senso comum que afirma que os partidos brasileiros são legendas inócuas, com interesses meramente eleitorais, que não atuam nos períodos da ‘entressafra’ das eleições. Os dados que coletamos pesquisando o funcionamento interno dos principais partidos paulistas mostram que a atividade partidária é intensa, que desenvolvem o trabalho político de agregação de interesses e que fazem a conexão com o eleitor. A crise de representação que testemunhamos há anos não é característica específica de nosso sistema, ela é generalizada nas democracias partidárias e resulta das mudanças estruturais da política e das variadas formas através das quais ela passou a ser feita. Mas os partidos continuam sendo as instituições fundamentais para o funcionamento democrático, eles representam interesses, formam governos, canalizam demandas e atuam na deliberação das políticas públicas. O sistema democrático funciona com essa mediação e é por isso que a confiança das instituições representativas é tão importante para a legitimidade do sistema. A democracia brasileira tem um déficit grande nesse aspecto.

Outro capítulo do livro, “Uma via de mão dupla: Recrutamento partidário de deputados estaduais evangélicos em São Paulo”, estuda a presença de políticos cristãos evangélicos na Assembleia Legislativa do estado entre os anos de 2003 e 2011. Hoje existe uma autodenominada “bancada evangélica” no Congresso Nacional. É possível relacionar diretamente essas formações ou há especificidade em cada um desses grupos?

Rachel Meneguello: O estudo mostra que os políticos cristãos evangélicos eleitos deputados na Assembleia Legislativa não conseguem se articular para a aprovação de uma “agenda evangélica”. As igrejas a que pertencem são heterogêneas, as representações são dispersas em vários partidos políticos, o que torna difícil a articulação política e a ação coordenada. Por exemplo, na legislatura paulista entre 2007 e 2011, a bancada evangélica composta por 13 parlamentares representava 11 igrejas distintas. Esse é também o cenário no Congresso Nacional. Há um certo predomínio de algumas denominações, sendo a Igreja Universal Reino de Deus a que mais destaca, mas a dispersão em siglas, às vezes localizadas em polos distintos do espectro ideológico, impede uma pauta única e uma ação parlamentar articulada.

Neste ano de eleições municipais, e em meio à crise do novo coronavírus, o que esperar das dinâmicas partidárias no estado de São Paulo? O que pode influenciar os resultados de 2020?

Rachel Meneguello: É possível que as ações de combate ao coronavírus conduzidas pelo governo estadual e pelos prefeitos tenham forte impacto sobre as eleições locais de 2020. Este ano vem sendo totalmente atípico e tem tido efeito claro sobre a percepção dos cidadãos sobre o papel das autoridades públicas, tanto no âmbito do estado quanto no âmbito nacional. Essa crise afeta diretamente as dinâmicas da saúde, da educação e da economia, e esses são fatores decisivos para compor a escolha política de nível local. Ainda temos que esperar a própria campanha para dimensionar como a crise do novo coronavírus será abordada pelos candidatos e partidos, mas parece correto sugerir que este será o ponto central da próxima eleição.

Ainda que encerre suas análises em 2016, como o livro pode ajudar a compreender a atual situação política do país?

Rachel Meneguello: O livro tem foco na organização da política paulista, aborda a dinâmica dos partidos, do eleitorado e do legislativo no estado até 2016. Embora ele aponte as potenciais mudanças que a eleição de 2018 provocou no quadro partidário, na dinâmica das preferências do eleitor e na movimentação de elites políticas, o livro não traz dados objetivos para tratar da política nacional atual. Entretanto, em linhas gerais, creio que é possível dizer que a política nacional que testemunhamos se organiza na direção contrária do que apresentamos para o estado de São Paulo no período estudado. A difícil relação do presidente com o Legislativo nacional, a distância que até o momento o presidente mantém com os partidos, inclusive com a própria legenda que o elegeu, e a difícil coordenação da máquina estatal são exemplos dessa distinção. A polarização que o país vive de forma aguda, desde 2018, teve reflexo no estado, ainda tem forte impacto na política nacional, será um dos vetores da formação de preferências do eleitor e pode indicar os caminhos da política local a ser definida nestas próximas eleições.

Publicado no Jornal da Unicamp

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