A década da desordem

Um relatório recente do Deutsche Bank com a sugestiva designação “A era da desordem” traça um cenário de turbulência generalizada para o mundo na década em curso.

Dois aspectos interligados sobressaem: o fim da «segunda globalização» e o ascenso da confrontação estratégica dos EUA com a China, por muitos apelidada de nova guerra fria.

É claro que a emergência do quadro pandêmico não ajuda a dissipar as nuvens do horizonte. Pelo contrário, embora se deva sublinhar que a desaceleração econômica no centro do sistema e a espiral de aprofundamento da crise estrutural do capitalismo são anteriores à disseminação do coronavírus. É neste pano de fundo que a incidência da COVID-19 vem ainda mais fustigar a economia mundial e agudizar as contradições e desequilíbrios do capitalismo.

Todas as previsões das instituições econômicas internacionais coincidem na avaliação de que o nível da atual recessão só é comparável aos tempos da Grande Depressão, superando a crise de 2007-09. Os EUA e todas as maiores economias registarão este ano uma contração assinalável do PIB. Com uma notável exceção: a China, única grande economia a não recuar para terreno negativo, apesar da quebra recorde dos últimos 40 anos registada no primeiro trimestre e da intensificação da guerra comercial e tecnológica – e da ofensiva geral contra Pequim – impulsionada pela administração Trump. As últimas previsões apontam para um crescimento do PIB chinês de cerca de 2%. Ver-se-á mais à frente o real impacto da presente recessão – com um custo estimado pela UNCTAD de 6 trilhões de dólares de destruição do PIB mundial e a eliminação de pelo menos 100 milhões de empregos – no curso magistral da crise capitalista.

Reforça-se a previsão de que será na década em curso que a China superará os EUA em termos de PIB nominal. A ascensão econômica do país governado pelo PCC é indubitavelmente o marco transcendente no seio do sintomático fim da “segunda globalização» a que alude o relatório do banco alemão.

A recessão em curso penetrou nos EUA como faca em manteiga. Há cálculos que mostram que a economia norte-americana atravessava antes da pandemia o mais longo período de quebra da taxa de lucro desde o fim da II Guerra Mundial. Desde janeiro, o número de pequenos negócios recuou quase 25%, dezenas de milhões de trabalhadores caíram no desemprego. O endividamento continuou a subir astronomicamente. O balanço da Reserva Federal (RF) engordou mais 3 trilhões de dólares, por via da compra de ativos!

A máquina de injeção de liquidez trabalha a todo o vapor, mas os cabeças da RF temem que a política monetária não seja suficiente para retirar a economia dos EUA do «buraco profundo», fazendo pairar o espectro da desvalorização acentuada da principal moeda mundial (Asia Times, 24.09.2020). Nas bolsas reina o festim em tempos de peste, com os índices de Wall Street em euforia. Só de abril a junho a capitalização das sete grandes empresas tecnológicas disparou para o dobro, ultrapassando os 8 trilhões de dólares. Poderá, contudo, o aumento dos lucros do grupo restrito das tecnológicas reverter a tendência geral de degradação da taxa de lucro que se tem aprofundado? Em última instância aqui reside a raiz da instabilidade e ameaças mundiais.

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