Mosaico sobre racismo no Brasil

“A realidade social brasileira é o reflexo de aproximadamente 4 séculos de escravidão e apenas 132 anos de abolição da escravatura”.

“Os pretinhos da Cecília”. Assim, eu e meus irmãos, éramos chamados antes de adquirirmos nossos RGs e CPFs.

Certa manhã fomos à via de fato, sobre uma das pontes do canal do Galo, contra as ofensas dirigidas à minha irmã por causa do tipo de cabelo. Éramos todos crianças crescidas indo à escola primária, reagindo sem entender as razões, os porquês a nos dividirem com agressões. Agíamos e reagíamos sob o que nos tinham ensinado, visto ou ouvido. Reflexos de algo que não controlávamos.

São lembranças que chegaram, entre tantos estranhamentos já vividos, quando o presidente da República e seu vice general negaram o racismo no país ao comentar o assassinato brutal do negro gaúcho Beto Freitas pelos seguranças do Carrefour, na véspera do dia da Consciência Negra. O negacionismo dessas eminentes autoridades foi a evidência ululante do racismo brasileiro, virulento, descarado e hipócrita. Esse negar recorrente sempre foi o desejo em tornar natural essa abjeta violência social.

Com a pandemia, o bolsonarismo afirma sua raiz colonial ao abandonar o povo à própria sorte. Relega tudo que não seja Casa Grande promovendo contradição artificial entre economia e vida, menosprezando o trabalhador; obstrui os caminhos que levam a mudanças de rumo e de inclusão social; zomba do sofrimento alheio e banaliza a morte das pessoas. Coincidentemente, as maiores vítimas do descaso presidencial e do coronavírus são a grande maioria da população que sofre a desigualdade: pretos, pardos, índios e brancos pobres.

É impossível olhar o Brasil e não ver o racismo materializado na geografia das cidades, na divisão de trabalho, no acesso de ir e vir, no direito de viver ou morrer. O racismo brasileiro convive e se alimenta das desigualdades sociais; tem construção histórica forjada por uma classe dominante, preconceituosa, complexada e mimética, que não esconde a vergonha que tem do país e o seu desprezo pelo povo; replicando o espírito tacanho do senhor de engenho, para quem o negro e o Índio não eram gente; os pobres trabalhadores brancos, serviçais e os mestiços de fora do senhorio, a escória.

Li recentemente um artigo de jornal sobre o desenvolvimento capitalista acabar com o racismo, que me pareceu mais ilusão que má fé, na vã expectativa de que uma pretensa “igualdade” anularia o preconceito e a discriminação. Obviamente, esse sistema socioeconômico não inventou o racismo e seus derivados, mas sua origem e natureza se alimentaram do mesmo desde a acumulação primitiva à extração do lucro máximo; reconstruindo ideologias que justificassem a escravidão negra e indígena. Embora tenha ampliado as riquezas no mundo, concentra-as cada vez mais em poucos, precarizando enormemente o trabalho e gerando um exército de reserva cada vez mais descartável.

Não é à toa que o racismo no Brasil está umbilicalmente ligado ao sistema colonial, à posição do negro e do indígena na produção; onde o trabalho que gerava a riqueza, extenuante e opressivo, era considerado opróbio e seus executores propriedades do senhor , que tinha o poder de vida e morte sobre esses seres considerados mais inferiores que xerimbabo; que confinados em senzalas existiam para reproduzir o mundo da Casa Grande, espaço sagrado, que viviam para servir. Com o passar dos tempos, os espaços mudaram de forma e os donos mudaram de trajes e trejeitos.

No entanto, os pensamentos e as práticas dos dominantes, que se replicam por toda a sociedade, e fortemente na classe média, continuam e reciclados na segregação geográfica e social; na reprodução da desigualdade; no extermínio das pessoas de cor que o branqueamento não extinguiu; na violenta exploração e confinamento degradante, que a pretensa invisibilidade não consegue esconder. Seus olhares de desprezo e condenatórios, suas frases agressivas e pejorativas são chicotadas, quando não balas, estrangulamentos e prisões, a mostrar que suas riquezas e lugares cativos não devem ser divididos com negros.

A realidade social brasileira é o reflexo de aproximadamente 4 séculos de escravidão e apenas 132 anos de abolição da escravatura. As chagas ainda estão abertas e visíveis nos noticiários, e marcadas pelas estatísticas. Em novembro de 2019, conforme a Agência Lupa 56,10% se declararam negros (pretos e pardos, de acordo o IBGE); 54,9% da força de trabalho e 2/3 das pessoas sem emprego; 47,3% dos pretos e pardos na informalidade.

Segundo o Banco Mundial (2018), 32,9% da população negra estão na linha de pobreza (15,4% da população branca) e 75,2% dos mais pobres. O IPEA(2019) registra que os brancos ainda ganham cerca de 2 vezes mais que os negros, sendo R$ 1.144,76 mensais para os brancos e R$ 580,79 para os negros. O IBGE(2018) apresenta rendimento médio domiciliar per capita de pretos e pardos de R$ 934,00 e R$ 1.846,00 para brancos.

O IBGE(2018) expõe que 42,8% da população negra vive sem esgotamento sanitário por rede de coleta ou pluvial (26,5% , da população branca); 17,9% sem abastecimento de água por rede geral e 12,5% sem coleta de lixo (brancos, 6%); 44,8% reside em domicílio sem máquina de lavar (brancos, 21%), ampliando a carga doméstica, que recai geralmente sobre as mulheres que já sofrem com o preconceito de gênero, de “raça” e de classe ao mesmo tempo.

A violência contra negros e negras é evidente e desmedida. Pelo Anuário Brasileiro de Segurança de 2019, 74,5% das pessoas assassinadas por policiais são pretos e pardos; 61% das mulheres que sofreram feminicídio eram negras; a chance de um jovem negro ser vítima é 2,5 vezes maior de que jovem branco. No Atlas de Violência, a taxa de assassinatos de mulheres negras cresceu 29,9% de 2007 a 2017 ante 4,5% de mulheres não negras. No Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do MJ(junho/2017) 61,6% dos detidos no país são pretos e pardos (maioria de jovens pardos e pretos por roubo e tráfico de drogas).

Com as lutas e conquistas dos movimentos antirraciais e do povo brasileiro, como a lei de Cotas e Fies, os negros são maioria no ensino superior (IBGE2018) com 50,3%. No entanto, segundo o INEP 2018 “a maioria dos negros estudam em universidades particulares”; 591 mil de pretos que cursavam o ensino superior (66,86%) e 2,4 milhões de pardos (73,54%) eram em instituições privadas, com todas as consequências que isso possa representar. De 2016 a 2018, o analfabetismo dos negros de 15 anos ou mais caiu de 9,8% para 9,1% (IBGE), enquanto o analfabetismo dos brancos era de 3,9%. Mais de 70% dos jovens de 14 a 29 anos, que abandonaram a escola são pretos e pardos (IPEA).

Sobre a representatividade dos negros no poder, segundo o TSE, foram eleitos, em 2018, 24,4% de deputados federais e 28,9% deputados estaduais; em 2020, com o estabelecimento do percentual de repasse de verbas do fundo eleitoral se registraram 276 mil candidatos (pretos e pardos) para concorrer aos cargos majoritário e proporcional (49,9%); foram eleitos 1,7 mil prefeitos pretos e pardos, 32% dos mais de 5,4 mil (29%, em 2016); ocuparão 44% das cadeiras nas câmaras municipais (42%, em 2016). No Judiciário (2013), 14,2% e 1,4% dos magistrados eram pardos e pretos respectivamente; no Supremo e tribunais superiores, 1,3% se declararam pretos e 7,6%, pardos; em toda a história do STF apenas 3 pretos compuseram a Corte. Uma sub-representação para a população de 56% de pretos e pardos.

Esse quadro bastante desigual para os pretos e pardos brasileiros se agrava com a pandemia do coronavírus, em todos os aspectos, principalmente na área da saúde, conforme estudos recentes que demonstram o crescimento de casos e mortes nas populações mais vulneráveis. Segundo reportagem da CNN, com os dados de boletins do MS, a cada 10 brancos mortos pelo Corona morrem 14 negros; as internações se equilibram 49,1% de negros e 49% de brancos, porém 57% dos mortos são pretos e pardos e 41% são brancos, percentual superior pela demora na busca do tratamento pelo tempo de ocupação no trabalho, pela localização periférica e serviços de saúde precários, assim como maior tempo de espera por UTI. “Dentre a equipe de saúde, profissionais de saúde, os auxiliares de enfermagem também são pessoas negras e isso também os coloca em maior risco de contaminação, adoecimento e óbito”, diz Alexandre Silva, professor de faculdade de medicina de Jundiaí/SP.

O histórico acúmulo de exclusão e de desigualdades que atingem a população negra(pretos e pardos) revela a relação intrínseca do racismo com as construções políticas, ideológicas e econômicas no Brasil, desde sua origem. Impregna a sociedade civil, a superestrutura e suas instituições, as relações sociais de classe, enquanto relação de poder, de domínio para explorar e oprimir; sendo um complexo de ideias, culturas e práticas que se retroalimentam para manter o status quo da elite branca (Donos do poder).

Portanto, a complexidade e particularidade do racismo no país, remete-nos a uma visão mais ampla e profunda da luta antirracial; não se limitando a uma mera contenda entre negros e brancos. Embora todos os movimentos realizados trouxeram conquistas como a abolição da escravatura e a lei de Cotas, tão importantes para nós negros, essa luta tem caráter estratégico ligado ao fim da exploração do trabalho e a desconstrução da ideologia racista. É uma luta de afirmação constante e conquistas de espaços interligada à luta maior pela transformação social brasileira e pela democracia contra o fascismo.

A dimensão das tarefas, sejam imediatas como a garantia de punição aos crimes raciais ou a luta por igualdade de oportunidades e condições, com suas interseções com as frentes sindical, emancipacionista, de juventude, LGBTI entre outras, exige um determinado grau de integração a outras dinâmicas, que promova as interfaces dos movimentos; mas para isso é importante a unidade, em pauta mínima, dos diversos e inúmeros movimentos antirraciais. Com esse entendimento, o avanço da luta e das conquistas fica condicionado à capacidade de ganhar o povo para a bandeira do antirracismo.

Apesar do negacionismo bolsonariano, a desdenhar e tentar destruir tudo o que é brasilidade, o brasileiro se destaca nas ciências, nas artes, na arquitetura e na estética, nos esportes, na diplomacia e na criatividade. É um povo alegre e festivo festivo, inventivo e solidário. O povo brasileiro construiu um país de dimensão continental, que está entre as 10 maiores economias do mundo; sendo liderança regional e componente dos BRICS.

A realização do Brasil não é obra de uma “raça” superior, mas a construção de um povo miscigenado, onde todos os originários deram e dão ricas e significativas contribuições. Nesse sentido, a afirmação e o fortalecimento da unidade e da soberania do nosso povo passa pelo fim do preconceito e discriminação raciais e suas reais causas. Por isso essa luta passa ao largo do falso antagonismo entre as efemérides de 20 de novembro e 13 de maio.

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